Contribuição

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19 de abril de 2017

APOCALIPSE - Uma breve introdução a um dos livros mais controvertidos da literatura cristã

Se existe um livro que causa medo em algumas pessoas esse é o Apocalipse. Uma das principais causas para isso é talvez o sensacionalismo que o cinema e alguns meios de comunicação tem feito em cima deste livro durante algum tempo. E também (que não poderia deixar de ser mencionado), os sermões apavorantes e mal preparados de certos líderes religiosos. Agora, por trás de tudo isso existe uma "complexidade hermenêutica", ou seja, o Apocalipse não é um texto de fácil compreensão e interpretação. Ele é tão complexo que durante à história da análise bíblica surgiram várias escolas de interpretação. Que diga-se de passagem, mais atrapalham do que ajudam. 

O objetivo deste texto é tentar fazer do Apocalipse uma literatura simples e de fácil compreensão. E mostrar que de forma alguma ele fala do "fim do mundo", pelo contrário, à sua mensagem é voltada principalmente para à vida presente, aqui e agora.  

1. O CONTEXTO HISTÓRICO.
Segundo à tradição cristã o autor do Apocalipse foi o apóstolo João. Mas, existe outro ponto de vista de que foi outra pessoa (que também era conhecido como João, mas não era um dos apóstolos de Cristo) que escreveu as revelações do Apocalipse. O maior argumento para isso é que se compararmos o estilo literário do Apocalipse com o estilo literário do evangelho de João, se constatará uma grande diferença entre ambos. O Apocalipse é essencialmente simbólico, e o evangelho é narrativo. Com isso levanta-se a hipótese de que não foi o mesmo autor que escreveu as duas literaturas, mas pessoas diferentes. No entanto, não vamos perder tempo com esse detalhe. O foco principal é tentar compreender o texto apocalíptico. 

Cronologicamente (mas sem muita comprovação) o apocalipse foi escrito entre os anos 80 e 90 d.C., ou seja, quase no final do primeiro século da era cristã. Se realmente foi o apóstolo João quem escreveu essa literatura, então ele foi o último dos apóstolos que ainda nesta época estava vivo. Ele se encontrava exilado em uma ilha chamada Patmos. A causa deste exílio foi à perseguição feita pelo imperador Domiciano. Os cristãos não veneravam as divindades pagãs dos romanos e nem reverenciavam o imperador com deus. Esta atitude dos antigos cristãos gerou antipatia e a hostilidade do governo contra eles. Assim, muitos foram presos, mortos ou exilados, como foi a caso de João.

"O repúdio à autoridade mais elevada no império era considerado traição punível por meio de execução ou exílio. Para os cristãos, a mais elevada autoridade sobre a terra e no céu era o Senhor Jesus Cristo. render homenagem ao imperador equivalia a abandonar o Mestre que os redimiu. Para os romanos, o Cristianismo se tornara uma religião exclusivista que não tolerava nenhuma compromisso, pois seus seguidores falavam do reino de Deus, no qual Jesus governava como rei. Em virtude de sua adesão à fé cristã, os cristãos como uma classe tinham que suportar perseguição nas mãos do oficiais romanos que eram designados a reforçar a religião do estado em cada cidade e vila. Esses oficiais tinham a autoridade de punir as pessoas que se recusassem a honrar a César, executando-os ou os exilando-os" (KISTEMAKER, 2004, p. 57).

A forma mais coerente de se entender o Apocalipse é justamente entendendo o contexto histórico, político e social onde ele foi gerado. Quando isso é levado em consideração muitas "crendices" e "superstições" são desfeitas. O Apocalipse de João é endereçado a sete comunidades cristãs que estão passando por vários problemas internos e externos. São elas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia. Mas é necessário afirmar que as únicas coisas que existem dessas comunidades hoje são somente as ruínas. Essas comunidades deixaram de existir há muito tempo. 

Boa parte do simbolismo do Apocalipse deve ser entendido como uma resposta de Deus à opressão política e religiosa que os cristãos estavam sofrendo por parte dos romanos. A mensagem apocalíptica não está falando, essencialmente, das coisas do futuro que ainda iriam acontecer. Mas sim, da realidade do mundo presente. Em suma, à mensagem apocalíptica é para a vida presente e não para um futuro distante. 

2. AS CHAVES PARA LER E INTERPRETAR O APOCALIPSE.
A palavra Apocalipse significa ”revelação”, mas quando ele é aberto parece que não há muita coisa para ser revelada. Este livro tem um emaranhado simbólico e figurativo que causa muita confusão na cabeça das pessoas. Esse é o principal motivo que faz o Apocalipse não ser uma literatura de fácil compreensão, e com isso as pessoas desistem de lê-lo.  

"Ao abrir o Apocalipse ficamos impressionados. Muita gente se assusta e desiste. Alguns acham que o fim do mundo está próximo. Outros utilizam esse livro para condenar pessoas e religiões. Outros, ainda, acham que o Apocalipse aconselha os empobrecidos a desistir da luta, pois só na outra vida é que as coisas poderão mudar. [...]. Então a gente se pergunta: Será que vale a pena começar a ler o Apocalipse? E se vale a pena, quais são as chaves que abrem as portas dessa "casa"? E, uma vez abertas as portas, o que fazer, de modo que o Apocalipse não se torne uma "casa assombrada", cheia de fantasmas e de pesadelos? (BORTOLINI, 2016, p. 7).

Sem dúvida os destinatários para os quais o Apocalipse foi endereçado, compreendiam muito bem todo o simbolismo dele. No entanto, o leitor contemporâneo não consegue entender muita coisa. A explicação para isso é que o autor do Apocalipse não tinha o propósito de escrever para às futuras gerações de cristãos. O objetivo dele era resolver uma situação especifica do seu tempo e contexto. 

Mas isso não é motivo para desanimar. Felizmente há uma vasta literatura escrita que auxilia na pesquisa e estudo do Apocalipse. Com isso vejamos as sete chaves para se ler e entender o Apocalipse de um modo simples e prático.

a) O Apocalipse como um livro de resistência: Resistir contra quem? Contra à opressão e injustiça do imperialismo romano. Quando o Apocalipse foi escrito as comunidades cristãs estavam sendo oprimidas e perseguidas pela tirania do Império romano. O simbolismo do Apocalipse servia como uma espécie de "código secreto" que somente os cristãos entendiam. A mensagem apocalíptica é um estimulo para que as comunidades se unissem e resistissem contra o governo romano opressor. Essa chave mostra que o Apocalipse não é um livro que incentiva à alienação, ou seja, que os cristãos ficassem parados apenas "sonhado" com uma vida melhor no céu, e que tivessem uma atitude de indiferença para as coisas da vida presente. O Apocalipse é um livro de resistência e não de alienação. 

b) O Apocalipse como um livro de denúncia profética: A denúncia é uma característica dos profetas.  Os profetas do Antigo Testamento denunciavam a injustiça e a opressão por parte dos governos injustos. O autor do Apocalipse toma emprestado essa virtude dos antigos profetas e a aplica à situação em que ele e os outros cristãos estavam enfrentando. "E isso que o livro do Apocalipse deseja ser: um livro de denúncia profética que leva a resistir. Sem essa chave ele perde toda a força que estimulou os profetas do passado e do presente" (BORTOLINI, 2016, p. 9). 

c) O Apocalipse como livro de celebração"Feliz aquele que lê e aqueles que escutam as palavras desta profecia, se praticarem o que nela está escrito. Pois o tempo está próximo" (Ap. 1.3). Se Cristo venceu, os seus servos também venceram. Essa é a mística do Apocalipse. E essa mística trás para os cristãos que estavam (e estão) sendo perseguidos e oprimidos à certeza que de a vitória sobre toda injustiça chegará. O Apocalipse fala de um novo céu e uma nova terra aqui e agora. O Apocalipse não afirma que o mundo acabará um dia. 

"O Apocalipse não deixa dúvida: a nova sociedade não é algo que Deus prepara na outra vida; pelo contrário, ela tem suas bases em nossa história. [...] O Apocalipse, portanto, não fala do fim do mundo, e sim do modo como Deus quer que seja a nossa sociedade hoje" (BORTOLINI, 2016, p. 10).

d) O Apocalipse como livro de testemunho: O cristão que resiste e denuncia o sistema político opressor, está colocando sua vida em risco. O martírio é um exemplo de testemunho de fé e de resistência contra à opressão e a injustiça do imperialismo romano. Sempre que o Apocalipse fala sobre a "besta, falso profeta e a Babilônia", ele está diretamente se referindo ao poder político e religioso dos romanos. Qualquer pessoa que não recebesse a marca da Besta, que talvez pudesse se referir ao culto ao imperador romano. Seria severamente perseguido e morto. Provavelmente vários cristãos perderam suas vidas por testemunharem que Jesus era rei e não César. 

e) O Apocalipse como livro de felicidade: O Apocalipse chamada de bem-aventurados, ou seja, felizes todos os que ouvem e aceitam a sua mensagem. Existem 7 bem-aventuranças por todo o livro do Apocalipse (1.3; 14.13;16.15; 19.9;20.6; 22.7; 22.14). O número 7 é sinônimo de perfeição. Isso mostra que à mensagem de felicidade apocalíptica é perfeita. 

f) O Apocalipse é um livro de urgência: A urgência não está atrelada à crença no fim literal do mundo. Isso é algo sem fundamento. A urgência apocalíptica está ligada as questões existências terrenas. É urgente resistir e denunciar contra à opressão do imperialismo romano. Não somente deste, mas também de qualquer tipo de imperialismo que apareça durante a história.

g) O Apocalipse um livro de esperança: O Apocalipse não traz medo. Pelo contrário, ele tem uma mensagem de esperança para os cristãos oprimidos. As comunidades que lutam por um mundo melhor são consoladas pela mensagem de esperança apocalíptica. O Apocalipse mostra que os inimigos da Igreja serão derrotados pelo poder do "Cordeiro de Deus", e Ele reinará pelos séculos dos séculos. Tudo isso está ligado a vida presente, e não a um futuro distante.   

Estas sete chaves tem o objetivo de proporcionar um entendimento mais simples e prático do Apocalipse. Elas procuram fazer do Apocalipse um livro mais imanente, isto é, mais perto da terra. E também mais próximo da realidade social e religiosa das comunidades cristãs contemporâneas. 


Fontes:
BORTOLINI, José. Como ler o Apocalipse. São Paulo. Paulos, 2016.
KISTEMAKER, Simon. Apocalipse: comentário do Novo Testamento. São Paulo. Cultura cristã, 2004.

2 de abril de 2017

A PRESENÇA PROTESTANTE NO BRASIL: Uma breve síntese histórica.


O protestantismo brasileiro foi gerado pelo protestantismo norte americano, que por sua vez foi gerado pelo puritanismo calvinista britânico do século XVII. Ou seja, os puritanos colonizaram, evangelizaram e implantaram sua cultura religiosa na América do norte, tornando-se assim um país culturalmente protestante. Muitos anos depois vários missionários americanos foram enviados para o Brasil. Com o objetivo de darem continuidade à missão de evangelizar os nativos brasileiros na fé cristã protestante.

O objetivo do presente texto é ser uma concisa fonte de conhecimento histórico para todos os interessados em saber como as Igrejas protestantes históricas chegaram ao Brasil e também, na medida do possível, servir de auxílio nas aulas do Ensino religioso. 


1. Protestantismo imigratório.

Houve durante o período do Brasil colônia duas tentativas  de colonização protestante. Uma feita pelos franceses que durou de 1555 a 1560, e outra realizada pelos holandeses que vai de 1630 a 1654. Entretanto, essas duas expedições caíram no fracasso. Só a partir de 1810, mais ou menos dois século depois, é que os protestantes vão conseguir conquistar algum espaço nas terras brasileiras. 

Os luteranos alemães foram os primeiros a imigrarem para o Brasil. Logo no inicio eles não estavam interessados em realizar alguma atividade proselitistas, isto é, conquistas novos adeptos para sua religião. Estavam com o objetivo de fixar residência, de preferência nas regiões sul e sudeste. 

"Esses luteranos, especialmente da região Sul do Brasil, não tiveram quase nenhum apoio de sua matriz na Alemanha. Eles eram agricultores de pouca escolaridade e a religião era o seu espaço de identidade social. Por isso, organizaram-se numa forma popular de religião, através de Igrejas autônomas que não foram consideradas plenamente igrejas. Permanecendo em grupos, conservando sua língua e tradição. Desse modo, constituíram um protestantismo de imigração, camponês e de língua alemã, que praticavam através de arranjos possíveis" (DOMEZI, 2015, p. 146).
Não era fácil ser imigrante luterano em um país majoritariamente católico. A legislação brasileira de 1824 concedia uma certa liberdade religiosa para os estrangeiros, no entanto, os imigrantes luteranos não usufruíam plenamente de todos os direitos constitucionais. Além disso existia também o preconceito da população, que olhavam os luteranos como hereges e inimigos da Igreja. 

Com o passar do tempo os imigrantes luteranos foram se adaptando ao contexto brasileiro, e começaram lentamente a implantar a cultura protestante em várias regiões do Brasil. Além do Rio Grande do Sul foram progressivamente fixando residencia no Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Espírito Santo e no sul de Minas Gerais.


No inicio duas igrejas luteranas foram implantadas no Brasil: A Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB).  


Essas duas comunidades são as maiores representantes da fé protestante luterana no Brasil. No entanto, é possível que com o passar do tempo elas podem ter feito ou sofrido algum tipo de mudança teológica e litúrgica. Antropologicamente é possível afirmar isso. Toda religião que sai do seu lugar de origem, e se expande para lugares e contextos diferentes, será obrigada a fazer algum tipo de mudança. Caso contrário ela não conseguirá se adaptar ao novo contexto. Para mais informações sobre essas comunidades acesse esses links: IECLB , IELB   

2. As missões protestantes.

As missões protestantes só tiveram um avanço significativo com à chegada dos missionários americanos na segunda metade do século XIX. As comunidades luteranas que nesta época já estavam instaladas no Brasil, ficaram um tanto que fechadas entre si. Eram comunidades de alemães para alemães. Entretanto, com o passar dos anos, os luteranos perceberam à necessidade de terem um envolvimento mais próximo com os brasileiros, e abrindo suas portas para recebê-los.

Como falei no início desta postagem, o protestantismo brasileiro é "filho" do protestantismo americano. Os missionários americanos das mais diversas denominações (congregacionais, presbiterianos, metodistas, batistas, episcopais e como muito tempo depois os pentecostais), encontraram um momento muito oportuno para realizarem o seu trabalho missionário no Brasil.


Um dos fatores para essa abertura (que estrangeiros de igrejas não-católicas fossem recebidos no Brasil), foi o clima de tolerância religiosa que à legislação brasileira da época proporcionava. Ainda que catolicismo fosse à religião majoritária entre o povo brasileiro. Mas diga-se de passagem que essa tolerância não foi plena. Uma religião dominante nunca vai perder o seu status para outra religião concorrente.

"Essa imigração fez com que a Constituição brasileira de 1824, mesmo mantendo o catolicismo como religião do Estado, estabelecesse uma tolerância em relação aos outros cultos, como convinha a uma sociedade burguesa. Porém, era proibido a prática pública desses cultos, e os imigrantes não católicos eram considerados de segunda categoria, sem acesso a diversos dos direitos sociais" (DOMEZI, 2015, p. 142).
Como qualquer religião institucional o protestantismo tem dentro de si várias vertentes. Assim, é mais coerente falar em "protestantismo" no plural, do que protestantismo no singular. 

Essa postagem ficaria muito extensa se cada uma dessas vertentes fosse analisada. Um ponto convergente entre todas essas vertentes do protestantismo é que elas tem o mesmo objetivo: conquistar o maior número possível de pessoas para a fé cristã


Então darei ênfase ao trabalho missionário dos presbiterianos calvinistas. Mas por que? Por possuir um conhecimento histórico mais sólido sobre eles, e também pela significativa atuação na área da educação entre as pessoas mais pobres da sociedade. 


2.1. Ashbel Green Simonton - O implantador do presbiterianismo no Brasil.


O missionário americano Ashbel Green Simonton (1833-1867), foi o responsável pela implantação do presbiterianismo no Brasil em 1859. Essa vertente do protestantismo é muito fiel ao pensamento teológico-religioso do reformador francês João Calvino (1509-1564). 
Simonton começou suas atividades no Rio de Janeiro, onde, em 1862 fundou a primeira Igreja Presbiteriana no Brasil. O presbiterianismo foi o ramo do protestantismo que mais de expandiu em meados do século XIX. No entanto, foi sendo superado pelos batista já no inicio do século XX.
"Os presbiterianos brasileiros são fieis a João Calvino quanto ao governo eclesiástico. Organizam-se a partir de relativa autonomia da congregação local, num sistema federativo e piramidal de concílios. Cada congregação local tem um conselho de presbíteros leigos eleitos poe ela; um grupo de congregações locais forma um presbitério; um grupo de presbitérios forma um sínodo, e todos os presbitérios formam o supremo concílio ou assembleia geral" (MENDONÇA;FILHO. 2002, p. 36).
Como o passar do tempo, o presbiterianismo brasileiro foi se dividindo e engendrando outras denominações. No início haviam somente seis denominações presbiterianas, são elas: Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPI), Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (IPU), Igreja Presbiteriana Conservadora (IPC), Igreja Presbiteriana Fundamentalista (IPF) e Igreja Presbiteriana Renovada (IPR).  Para mais informações sobre o presbiterianismo no Brasil acesse este link: Presbiterianismo no Brasil

2.2. A educação como estratégia missionária. 
O protestantismo histórico é essencialmente "uma religião do livro", ou seja, a Bíblia é a principal coluna da fé protestante. Então, para poder lê-la e interpretá-la é necessário que o individuo seja alfabetizado. Os missionários protestantes, e mais especificamente os presbiterianos, ao chegarem ao Brasil viram a carência educacional da população mais pobre. As pessoas eram, em sua maioria, analfabetas.
"A carência de instrução também era um notável empecilho ao aprendizado da doutrina protestante, todo ele calcado na leitura da Bíblia, livros, revistas e jornais, que logo começaram a ser publicados por iniciativa das missões. O cultos protestante, especialmente como foi introduzido aqui, é, ao contrário do católico essencialmente simbólico e ritualizado, caracteristicamente informal e discursivo. [...] Daí não ser difícil concluir que a evolução do protestantismo dependia, em grande dose, da alfabetização de seus adeptos atuais, e em potencial da criança" (MENDONÇA, 2008, p. 148).
Mas que tipo de educação foi essa? Quais foram os seus métodos pedagógicos? Essa educação conseguiu erradicar o analfabetismo entre as camadas mais pobres? Há pouquíssimos dados históricos que nos conduzam a uma afirmação concreta. Entretanto, é possível supor que essa educação seguia os padrões norte-americanos. 
"É justo pensar que parecia estar presente no espírito missionário a necessidade de reproduzir no Brasil o acontecido na América do Norte: se o êxito americano podia ser atribuído à colonização por povos protestantes, o Brasil podia ser colocado no mesmo caminho por via de um transplante cultural em todos os seus aspectos" (MENDONÇA, 2008, p. 163).
Será que se o Brasil tivesse sido colonizado pelos americanos, logo no início, ele seria um país melhor do que é hoje? Talvez sim. A America do Norte ainda é a maior potencia econômica do mundo. Logo no início à sociedade americana foi moldada por princípios éticos protestantes que até hoje fazem parte da vida de muitos americanos. É característico do protestantismo valorizar a educação. Quando um país não tem interesse pela educação a tendencia dele é ser um país atrasado e subdesenvolvido. 

Não é possível comprovar se as missões protestantes conseguiram introduzir à Bíblia como leitura habitual do povo brasileiro. Existiram muitos obstáculos como a intolerância por parte do catolicismo, que era a religião dominante, como o alto índice de analfabetismo da população. E sejamos sinceros, de lá para cá, à situação não mudou muito!



Fontes:

DOMEZI, Maria Cecilia. Religiões na história do Brasil. São Paulo. Paulinas, 2015.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo. Edusp, 2008.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo. Loyola, 2002.

12 de março de 2017

PRINCÍPIOS ÉTICOS NAS RELIGIÕES - Um tema para o Ensino Religioso.


As tradições religiosas são um pertencimento humano. Ou seja, elas fazem parte do contexto social e cultural de um povo. Uma das razões pelas quais vários indivíduos buscam algum tipo de religião é para "colocar ordem na vida". Por causa das intempéries do cotidiano, às pessoas buscam na fé religiosa, sentido para vida, espiritualidade, esperança para viver e também orientações para uma conduta correta. 

A ética é um ramo da filosofia, e as religiões possuem em seu repertório doutrinário princípios éticos. Com isso podemos concluir que: religião e filosofia andam juntas. Geralmente quando uma pessoa procura uma religião, e adere a ela, consequentemente aceitará os princípios éticos e morais dessa religião.


O objetivo deste texto é ser mais uma fonte de apoio para auxiliar o trabalho dos professores do Ensino Religioso. O ethos é um dos eixos temáticos dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER).

"É a forma interior da moral humana em que se realiza o próprio sentido do ser. É formado na percepção interior dos valores, de que nasce o dever como expressão da consciência e como resposta do próprio "eu" pessoal. O valor moral tem ligação com um processo dinâmico da intimidade do ser humano e, para atingi-lo, não basta deter-se à superfície das ações humanas" (PCNER, 2009, p. 55-56). 
São analisados, de forma resumida, os princípios éticos do hinduísmo, budismo, judaísmo, islã e cristianismo.  

1. Hinduísmo.

"A ética do hinduísmo funda-se no carma, a lei moral de causa e efeito, e no darma, o conceito do caminho moral correto que cada pessoa deve seguir. Como o caráter e as circunstancias de uma pessoa variam, a fé lhe oferece maneiras de viver bem e seguir seu darma" (WILKINSON, 2011, p. 172).
"Aquilo que faço aqui e agora, terá consequências na próxima reencarnação". A ética hindu está completamente ligada a lei da "causa e efeito". O fiel hindu procura a partir do seus méritos e esforço próprio ter uma conduta moral que lhe garanta viver melhor em outra vida.

Mas qual a diferença entre carma e darma? O termo carma vem do sânscrito que significa "ação", "ato","trabalho", está ligado as consequências das ações feitas pelo homem, e que determinarão o que acontecerá com ele futuramente. O carma é um código de ética coletivo, ninguém foge dele. Já o darma é mais individual e está ligado a casta que a pessoa faz parte. Existe um darma para cada tipo de pessoa, e cabe a cada um viver conforme o seu darma. 

"A sociedade hindu é dividida numa série de classes sociais, chamadas varnas ou castas. A vida e as ações de todos dependem da classe em que nasceram. Por tradição, o darma de uma pessoa tem relação direta com a varna em que nasceu. [...] A casta que um hindu nasce afeta sua escolha de trabalho, de cônjuge, e das pessoas com as quais pode comer ou de quem pode aceitar comida. A ética hindu se ajusta a esse sistema de classe, e a pessoa deve obedecer às regras de casta para permanecer ritualmente pura" (WILKINSON, 2011, p. 173).
Não podemos esquecer que dentro desse sistema de castas, existem castas superiores e inferiores. E é um sistema que não permite mudanças, ou seja, quem é de uma casta inferior não pode mudar para outra superior. Em suma, o individuo cresce e morre na casta que nasceu. 

Mas apesar disso, independente da casta, os hindus acreditam que a vida é sagrada. A violência deve ser evitada. E é condenável matar animais para alimentação. Essa é a causa da vaca ser um animal sagrado para os hindus. Os hindus não comem carne de vaca, eles são essencialmente vegetarianos. 


2. Budismo.

O Budismo é uma divisão do hinduísmo, mas tomou emprestado alguns princípios éticos da antiga religião.
"Tal como outras religiões da Índia, como o hinduísmo e o jainismo, o budismo adere à lei da causalidade moral, ou carma, segundo a qual os seres humanos acumulam mérito ou demérito (carma bom ou mau) como resultado de seu comportamento.[...] Nesse ínterim, esperam acumular mérito seguindo os preceitos éticos estabelecidos quando o budismo surgiu" (WILKINSON, 2011, p. 194). 
A ética budista está fundamentada no "caminho das oito vias", é através deste caminho em que o fiel budista se esforça para se livrar do sofrimento e do desejo. Semelhante ao hinduísmo, a ética budista é essencialmente meritória, ou seja, é pelos seu méritos que o budista alcança à libertação dos desejos e do ciclo de reencarnações. 
"Com base em sua própria experiência, Buda acreditava que o homem deve evitar os extremos da vida. Não se deve viver nem no prazer extravagante, nem na autonegação exagerada. Ambos os extremos acorrentam o homem ao mundo e, assim, à "roda da vida". O caminho para dar fim ao sofrimento é o "caminho do meio", e Buda o descreveu em oito partes: (1) perfeita compreensão; (2) perfeita aspiração; (3) perfeita fala; (4) perfeita conduta; (5) perfeito meio de subsistência; (6) perfeito esforço; (7) perfeita atenção, e (8) perfeita contemplação" (HELLERN; NOTAKER; GAARDER, 2000, p. 57).
Os pontos 3, 4 e 5, estabelecem código moral no budismo. A perfeita fala significa que homem deve se abster de falar mentiras, calúnias e fofocas. O budista deve falar de forma verdadeira e amigável com o seu semelhante. A perfeita conduta está relacionada a não matar, não roubar, não ter uma vida promiscua, etc. A perfeita subsistência está relacionado à escolha de uma profissão. O budista não teve escolher um trabalho que entre em confronto com os ensinamentos budistas. Por exemplo, é incompatível um budista ser açougueiro, pois esse trabalho entra em desacordo com o princípio budista de não matar.

3. Judaísmo. 

"O judaísmo tem centenas de mandamentos, mas os judeus não veem sua fé como legalista. Como os ensinamentos da Torá e do Talmude são muito práticos e cobrem todos os aspectos da vida, os judeus estão conscientes de sua religião e de sua ligação com Deus em tudo o que fazem" (WILKINSON, 2011, p. 72).
A ética judaica não é dualista, ou seja, os judeus não fazem distinção entre ética e vida religiosa. Na Torá judaica existem ao todo 613 mandamentos, que regem vários aspectos da vida dos judeus.
"O judaísmo dá destaque a uma série de qualidades eticamente boas: generosidade, hospitalidade, boa vontade para ajudar, honestidade e respeito pelos pais. Um princípio fundamental é não fazer mal aos outros, ou, de maneira afirmativa: "Amará o teu próximo como a tio mesmo" (Levítico 19.18). [...] A Bíblia exige que sejam dados de presente aos pobres os frutos da terra. Desde os tempos antigos era hábito não colher o que desse nos cantos dos campos, para que os pobres pudessem ali entrar e colher para si. Do mesmo modo, parte das azeitonas e das uvas era deixada nas árvores e nos vinhedos para ser apanhada pelos pobres" (HELLERN; NOTAKER; GAARDER, 2000, p. 112).
Colocar esses preceitos em prática é uma forma do fiel judeu se aproximar do Eterno. À medida que os mandamentos da Torá são observados e praticados; a vida social e comunitária dentro do judaísmo se torna justa, no sentido de que os menos favorecidos sejam amparados e os mais abastados sejam solidários. 

4. Islã. 

"O Islã é uma religião prática. Oferece a seus seguidores um corpo de instruções sobre como viver suas vidas, e estabeleceu um sistema, chamado xariá, para orientar a tomada de decisões morais e legais. Enraizadas no Corão, essas instruções morais também acolhem a opinião de líderes religiosos" (WILKINSON, 2011, p. 134).
Todos princípio éticos islâmicos estão contidos na Xariá. É através dela que à vida do fiel muçulmano, como da sociedade são regidos. O Corão é o principal fundamento da Xariá e da ética muçulmana. No entanto, também existe a Suna que são os relatos da vida do Profeta Maomé. Quando uma passagem do Corão não é bem compreendida, a Suna (Hadith) do Profeta serve como auxilio interpretativo. Quanto mais o crente muçulmano conhece o Corão, mais aprenderá os princípios éticos do Islã. 

5. Cristianismo.

O principal fundamento da ética cristã é a vida e os ensinos de Jesus Cristo. O fiel cristão procurará conduzir a sua vida através do que Cristo ensinou. O sermão da montanha, registrado no Evangelho de São Mateus, é uma das bases para fundamentação da ética cristã. 
"O chamado Sermão da Montanha (Mateus 5-7) é fundamental para as bases éticas do cristianismo. Jesus começa dizendo à multidão que não veio para revogar a lei judaica de Moisés, mas sim para cumpri-la. Ele prossegue estabelecendo um novo sistema ético que estende a lei mosaica de um modo que se tornou fundamental para a formulação de uma moralidade cristã distinta. Amplia o mandamento "Não matarás", fazendo-o incluir até o fato de alimentar raiva contra o outro; expande o mandamento contra o adultério para que abranja desejos lúbricos; e reforça a injunção contra a invocação em vão do nome do Senhor, nela inserido praguejar falando em céu, terra ou em si próprio" (GOOGAN, 2007, p. 75).
Por ser a religião com o maior número de adeptos; é comum que os princípios éticos do cristianismo acabem se espalhando para outras partes do planeta. Várias nações e países foram, durante sua história, moldados em princípios éticos cristãos. Trabalhos beneficentes, decisões jurídicas e a constituição de alguns países, foram direta ou indiretamente fundamentados em algum principio ético cristão.  

6. Considerações finais.

Ao analisar resumidamente os princípios éticos dessas cinco religiões podemos concluir que: 

1. Cada religião tem uma forma diferente de entender o que é ética; 

2. Por terem surgido em contextos sociais e culturais distintos, as religiões podem ter princípios de conduta que podem gerar conflitos com os de outra religião. Por exemplo, o Corão permite que o homem, se tiver condições econômicas, tenha até quatro mulheres (Alcorão 4.3) . É o que chama-se de poligamia. Na ética cristã a poligamia não é permitida; 
3. Os princípios éticos não são eternos, eles podem sofrer algum tipo de mudança com o passar do tempo; 
4. As religiões procuram, cada uma ao seu modo, serem um canal de mediação entre o homem e o transcendente. 



REFERÊNCIAS: 
COOGAN. Michael. Religiões. São Paulo, Publifolha, 2007.
HELLERN, Vitor; NOTAKER, Henry; GAARDER, Jostein. O livros das Religiões. São Paulo. Companhia das letras, 2000.
FONAPER. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Religioso. São Paulo, Mundo Mirim, 2009.
WILKINSON, Philip. Religiões: guia ilustrado Zahar. Rio de Janeiro, Zahar, 2011.

5 de março de 2017

A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA EXPANSÃO DO CRISTIANISMO PRIMITIVO - Um estudo sociológico.


Há muitos detalhes sobre a vida dos cristãos primitivos que nós desconhecemos. Existe muita literatura escrita e publicada contando e recontando a história deles. A principal fonte é o livro histórico dos Atos do Apóstolos, escrito pelo médico Lucas, que segundo a tradição cristã foi companheiro de viagens do apóstolo Paulo. Depois vem outras literaturas históricas que procuram fazer algumas complementações sobre como era o cotidiano da comunidade cristã primitiva. Mas aqui cabe uma observação: tem sido dada muita ênfase às atividades dos homens, e pouquíssima coisa é dita sobre à atuação das mulheres.

Pessoalmente comparo a história dos cristãos primitivos como um "grande bolo", no qual o livro dos Atos dos apóstolos é apenas uma "pequena fatia" deste bolo. Ou seja, Lucas não diz tudo o que aconteceu naquela época do primeiro século da era cristã. Há muito mais coisas para serem descobertas e escritas.

O presente texto tem como objetivo dar destaque especial à atuação das mulheres na sociedade de seu tempo, e como elas contribuíram na expansão da religião cristã antiga. E ao mesmo tempo conhecer um pouco melhor o "contexto social" onde elas viveram.

1. A decadência moral do mundo greco-romano clássico.
Historicamente a religião cristã surgiu em um contexto onde quem dominava o mundo era o Império Romano. Naquele tempo à sociedade era politicamente dominada pelos romanos e intelectualmente dominada pelo pensamento grego. Com essa junção surgiu o que podemos chamar de ambiente "greco-romano".

Naquela sociedade o homem era o centro de tudo, isto é, os homens eram quem ditavam as regras. Em um contexto como esse, onde homem é o chefe supremo, as mulheres não tinham vez e voz. Elas tinham um status inferior na sociedade. As mulheres romanas e atenienses sofriam bastante.
"O status das mulheres atenienses era muito inferior. As meninas recebiam pouca ou nenhuma educação. Em geral, as mulheres de Atenas casavam-se na puberdade e muitas vezes até antes. Segundo a lei ateniense, a mulher era considerada como criança, independentemente da idade, e, portanto, constituía propriedade legal de alguns homens em todos os estágios de sua vida. Os homens podiam divorciar-se pela simples dispensa de uma esposa da casa. Além disso, se uma mulher fosse seduzida ou raptada, seu marido era legalmente obrigado a divorciar-se dela. Se uma mulher quisesse o divórcio, seu pai ou algum outro homem tinha de levar o caso à apreciação de um juiz. Por fim, as mulheres atenienses podiam possuir bens, mas o controle da propriedade sempre cabia aos homens, aos quais ela "pertencia". (STARK, 2006, p.117).
Pelo que podemos ver, as leis eram feitas para proteger e conceder mais direitos aos homens do que para as mulheres. Igualdade entre homens e mulheres era algo estranho para o mundo greco-romano. É possível afirmar que nesse contexto a mulher era mais considerada com um objeto do que como pessoa. 



Além desse fato, existia uma prática mais desumana: o aborto e o infanticídio de crianças recém-nascidas. Penso que em uma sociedade onde esse tipo de prática é aprovada, ela não ficará de pé por muito tempo. Talvez esse tenha sido um dos motivos da desgraça do mundo greco-romano. 
"Era comum abandonar ao relento uma criança indesejada, pois assim ela podia, em principio, ser recolhida por alguém que desejasse criá-la, mas nessas condições geralmente era vitimada pelas intempéries ou pelo animais e pássaros. O abandono de crianças era prática não só muito corriqueira, como também legalmente justificada e defendida pelos filósofos" (STARK, 2006, p. 134).
Nem tudo o que os filósofos gregos disseram ou ensinaram merece o nosso respeito. Qualquer tipo de filosofia que pregue ou incentive à morte de inocentes deve ser descartada. 

No mundo greco-romano o número de homens era maior do que o das mulheres.  Isso por causa do aborto. Muitas mulheres morriam ao abortarem seus bebês. E os métodos abortivos da época eram muito inadequados.  
"Dessa forma, o aborto não só impedia a ocorrência de muitos nascimentos, como também levava à morte grande número de mulheres, antes que pudessem dar sua contribuição à fertilidade. O resultado dessa prática era uma incidência significativa de casos de infertilidade nas mulheres que sobreviviam aos abortos" (STARK, 2006, p. 135).
Há algumas razões para que a prática do aborto no mundo greco-romano fosse tão comum: 1) Promiscuidade - é possível que mulheres casadas (e também solteiras) engravidavam de outro homem na ausência do marido, e com isso, secretamente praticavam o aborto; 2) Questões econômicas - mulheres pobres abortavam por não terem condições de sustentar um filho, e as mulheres ricas faziam aborto para não compartilhar os seus bens com muitos herdeiros; 3) O poder do homem - a legislação romana dava ao homem o poder de vida e morte sobre os membros da família. Tudo indica que uma das maiores causas de aborto no mundo greco-romano vinha por determinação masculina. Quando uma criança era indesejada o marido mandava a esposa ou amante abortar. Somente bebês com boa formação física e do sexo masculino poderiam viver. 

Esses fatores sociais servem para mostrar o que pode levar uma sociedade ao declínio. Por trás de todos os problemas sociais, culturais e econômicos, existe o declínio moral. Não é à toa que grandes reinos e impérios caíram. E qualquer semelhança com o Brasil e com outros países não é mera coincidência!

2. A contribuição das mulheres na expansão do cristianismo primitivo. 

A situação das mulheres dentro da religião cristã era muito melhor, comparando com à realidade das mulheres pagãs do mundo greco-romano. O cristianismo antigo tinha valores que proporcionavam as mulheres a terem um "status mais elevado" dentro da comunidade cristã. 

Se no mundo greco-romano pagão tinha mais homens do que mulheres. No cristianismo antigo a situação era inversa: tinha mais mulheres do que homens. Essa diferença parte do princípio de que dentro da religião existiam normas éticas que proibiam o aborto e o infanticídio de crianças de ambos os sexos. É possível supor que nasciam mais meninas do que meninos. 
"Em primeiro lugar, um aspecto importante do avançado status das mulheres na subcultura cristã é que as cristãs não toleravam o infanticídio. Isso decerto era o resultado da proibição contra todos os infanticídios. No entanto, a concepção mais favorável do cristianismo em relação às mulheres também é demonstrada em sua condenação do divórcio, do incesto, da infidelidade conjugal e da poligamia". (STARK, 2006, p. 119).
Havia muitas mulheres solteiras, férteis e prontas para o casamento. Mas como o número de homens cristãos era menor, muitas dessas mulheres se casaram com homens pagãos do mundo greco-romano. E isso gerou um grande número de casamentos exogâmicos, isto é, casamentos mistos. Os homens acabavam se "convertendo" à religião da esposa, e muito provavelmente os filhos que eram gerados foram sendo criados nos princípios da religião cristã. 
"Tanto Pedro como Paulo sancionaram o casamento entre cristãos e pagãos. Pedro exortava que as mulheres de maridos inconvertidos se sujeitassem a eles, de modo que os homens pudessem ser atraídos para a fé ao "observarem vosso comportamento casto e respeitoso" (1Pd 3,1-2). Paulo dá instruções semelhantes, notando que "o marido incrédulo é santificado pela esposa" (1Cor 7,13-14). Ambas as passagens são comumente interpretadas como dirigidas a pessoas cuja conversão se dera após o casamento" (STARK, 2006, p. 127).
Também é possível afirmar que algumas dessas mulheres tiveram à sorte de contrair núpcias com homens da elite romana. Esses casamentos mistos geraram muitas "conversões secundarias", para à religião cristã. Ou seja, as mulheres abraçavam a fé (conversão primária), e os homens por causa da influência religiosa da esposa também abraçavam a fé (conversão secundária). Sem dúvida o cristianismo antigo era muito atraente para as mulheres.

Tudo também indica que as mulheres assumiam posições de liderança dentro da religião. Mas diga-se de passagem que esse é um tema que causa muita polêmica em algumas comunidades cristãs tradicionais contemporâneas. 
"No que se refere ao status das mulheres na Igreja primitiva, acredita-se muito na passagem de 1Cor 14,34-35, em que Paulo parece proibir as mulheres até de falar na Igreja. Laurence Iannaccone (1982) sugeriu que esses versículos teriam sido o oposto da posição de Paulo, configurando-se na realidade como citação de alegações feitas em Coríntios e que Paulo então refutara. Certamente a afirmação discrepa de qualquer coisa mais que Paulo tenha escrito a respeito do papel adequado das mulheres na Igreja. Além disso, por diversas vezes Paulo reconhece as mulheres em posição de liderança em várias comunidades" (STARK, 2006, p. 123).
É comprovado que na religião cristã antiga as mulheres assumiam a função de "diaconisas" (servas), e que estavam a frente das obras de caridade e beneficência.  Houve uma diaconisa na cidade de Roma cujo o nome era Febe, que contribuía na ordem litúrgica dos cultos e na obra social.
"Em Rm 16,1-2, Paulo apresenta e recomenda à comunidade de Roma "nossa irmã Febe, diaconisa da Igreja de Cencréia", que lhe fora de grande préstimo. Os diáconos tinham importância considerável na Igreja primitiva, prestando assistência às funções litúrgicas e administrando as atividades beneficentes e assistenciais da Igreja" (STARK, 2006, p. 124).
É grande a diferença entre o mundo greco-romano pagão e o cristianismo primitivo, em relação a atitude para com as mulheres. Mas por trás disso existe algo machado "cosmovisão", isto é, visão de mundo. O cristianismo primitivo nasceu em um contexto onde o poder do macho (machismo) era a ideologia dominante. Já a religião cristã defendia (e defende) que "homens e mulheres são juntos "a imagem e semelhança de Deus", e com isso um não pode subjugar o outro. 

Para concluir podemos dizer que o cristianismo antigo foi, em sua época, um movimento religioso revolucionário, porque ele trouxe dignidade e respeito para as mulheres, coisa que o mundo greco-romano pagão desconhecia. 

Fonte:
STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo: Um sociólogo reconsidera a história. São Paulo. Paulinas, 2006.

1 de março de 2017

A BÍBLIA E O ALCORÃO - Um estudo comparado.


Tanto judeus como cristãos consideram a Bíblia como a palavra de Deus. Ela é a revelação de Deus para a humanidade. Por outro lado, para a comunidade muçulmana o Alcorão é a autentica palavra de Deus. Mas o que existe de comum e divergente entra a Bíblia e o Alcorão? Este é o objetivo deste sucinto texto: colocar a Bíblia e o Alcorão frente a frente, e com isso descobrir quais são os pontos comuns e os divergentes entre esses dois livros sagrados. 

1. A Bíblia dentro do Alcorão. 
Judaísmo, cristianismo e islamismo são religiões de revelação. Elas tem o objetivo de tornar Deus (Javé, Jesus ou Allá) conhecido. Das três o Judaísmo é a crença monoteísta mais antiga. Em parte, o cristianismo e o islamismo tomam emprestado alguns princípios das escrituras judaicas para fundamentar as suas doutrinas e escrituras. Sem dúvida Maomé conhecia a Torá judaica e o Evangelho cristão.
"Maomé conhecia antes de tudo o Pentateuco, especialmente o Livro do Gênesis. Ele conhecia tradições provenientes dos livros históricos, tal como a história de Davi e Golias (Sura 2.250), conhecia Davi e Salomão (34.10-12), mas não conhecia os profetas e os livros sapienciais. [...] As constantes repetições das histórias da criação, de Abraão e de Moisés são as que mais causam impressão de que o Antigo Testamento esteja tão amplamente presente no Alcorão, embora as variantes narrativas possam desfazer um pouco os estereótipos de estrutura narrativa" (GNILKA, 2006, p. 64).
Nenhuma religião é singular. Toda nova religião é influenciada ou nasce de outra mais antiga. Uma coisa comum entre o Evangelho cristão e o Alcorão islâmico, é que ambos buscaram no Antigo Testamento judaico à base para se fundamentarem. Aqui encontramos um ponto de convergência.

Mas como foi que Maomé teve contato com as Escrituras hebraicas e cristãs? Infelizmente há pouquíssimas fontes históricas que mostrem detalhadamente esse encontro "ecumênico". Conjectura-se que em Meca e Medina (que foram as duas cidades árabes onde Maomé exerceu sua influência), provavelmente haviam comunidades judaicas e cristãs. Há uma passagem no Alcorão onde Maomé cita "as tretas" que existiam entre judeus e cristãos: 

Os judeus dizem: "Os cristãos não se baseiam em nada". E os cristãos dizem: "Os judeus não se baseiam em nada". Uns e outros, porém, recitam as Escrituras. E os que nada sabem fazem as mesmas alegações. Deus julgará suas disputas no dia da Ressurreição (Alcorão 2.113).  

Tudo indica também que Maomé tinha algum conhecimento sobre os evangelhos apócrifos. Há trechos do Alcorão que citam os "supostos" milagres que Jesus fez quando era criança.

E Deus dirá a Jesus: "Ó Jesus, filho de Maria, lembra-te de Minha graça sobre ti e sobre tua mãe quando te fortaleci com o Espírito Santo, e falaste aos homens no berço e na tua idade madura. E quando te ensinei o Livro, a sabedoria, a Torá e o Evangelho, e quando, Eu permitindo, modelaste com barro uma figura de pássaro e sopraste nela, e ela era pássaro. E quando, com Minha permissão, curava os cegos e os leprosos e ressuscitava os mortos. E quando te protegi contra os filhos de Israel na época em que lhes dava as provas, e os descrentes dentre eles diziam: 'Tudo isso não passa de magia.' (Alcorão 5. 110). 

Mas por que Maomé consultou as Escrituras judaicas e cristãs? Será que as revelações divinas que ele recebeu através do anjo Gabriel não eram suficientes? Pode-se supor que o discurso monoteístas das Escrituras judaico-cristãs era importante para Maomé, porque esse também era o seu discurso. Abraão, Moisés e Jesus foram rejeitados pelos seus. Maomé também foi rejeitado. É possível dizer que Maomé encontrou uma inspiração nos personagens bíblicos, apesar da tradição islâmica considerar Maomé como o último profeta de Deus. 

2. Pontos teológicos. 
Nesta parte descobriremos quais são os pontos convergentes e divergentes entre à Bíblia e o  Alcorão. 

2.1. Convergências.
a) Bíblia e o Alcorão são livros de religiões de revelação, isto é, Deus se revela aos homens através do texto escrito. E esses textos acabaram sofrendo à influência do contexto cultura de onde surgiram.

b) O monoteísmo é um ponto em comum entre o Antigo testamento e o Alcorão. Somente existe um único Deus. Neste caso o politeísmo (adoração a várias divindades) é totalmente rejeitado. O Deus da Bíblia é o Deus do Alcorão. Mas o Alcorão interpreta esse Deus de uma forma diferente. No entanto, o conceito cristão de Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), não defendido no Alcorão. 

c) Bíblia e o Alcorão concordam que Deus criou os céus e terra.

d) No Alcorão Jesus é respeitado como um "grande profeta" de Deus. Maria mãe de Jesus também é muito respeitada.

e) Abraão é o maior elo de ligação entre a Bíblia e o Alcorão. "Abraão é modelo para o Alcorão pelo fato de se ter convertido ao monoteísmo. Para o povo judeu Abraão é o patriarca" (GNILKA, 2006, p. 217).

f) A Bíblia e o Alcorão concordam que a raça humana teve sua origem em Adão. Mas, o entendimento cristão de "pecado original", isto é, que em Adão toda à humanidade caiu em pecado, não encontra apoio do Alcorão. Cada um é responsável pelos seus erros.

g) O Novo testamento e o Alcorão concordam que haverá à ressurreição dos mortos.  

2.2. Divergências.
a) O conceito cristão de que Deus se revelou em Jesus de Nazaré é rejeitado pelo Alcorão. Deus se revelou em um livro, e esse é o Alcorão. 

b) O Alcorão reconhece Jesus como "filho de Maria" e não como "Filho de Deus". A divindade de Cristo é negada pelo Alcorão. A divindade de Jesus defendida pelos cristãos entra em conflito com o monoteísmo. Nesse ponto judeus ortodoxos e muçulmanos andam juntos.  

c) No Alcorão a redenção é produto do esforço humano, ou seja, é o próprio homem que pela sua submissão e obediência aos preceitos corânicos, alcançará a ressurreição. A redenção do ponto de vista cristão, não tem apoio no Alcorão.

d) Na Bíblia Isaac e seus descendentes são os herdeiros de Abraão. No Alcorão é Ismael filho da escrava Agar o verdadeiro descendente abraâmico. Aqui está a origem da guerra entre israelenses e palestinos! 

3. Conclusão.
Podemos ver que existe mais concordância entre o Antigo Testamento judeu e o Alcorão do que com o as Escrituras cristãs. E é notório que o "divisor de águas" é a visão que cada livro tem sobre Jesus. É possível dizer que o maior fundamento da mensagem de Maomé foi o monoteísmo, a crença que existe um único Deus. Assim, a divindade de Cristo e o conceito de Trindade entram em choque com o conceito de Deus corânico.  

Fontes:
O Alcorão: livro sagrado do Islã. 
GNILKA, Joachim. Bíblia e Alcorão: o que os une - o que os separa. São Paulo. Loyola, 2006.