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19 de abril de 2017

APOCALIPSE - Uma breve introdução a um dos livros mais controvertidos da literatura cristã

Se existe um livro que causa medo em algumas pessoas esse é o Apocalipse. Uma das principais causas para isso é talvez o sensacionalismo que o cinema e alguns meios de comunicação tem feito em cima deste livro durante algum tempo. E também (que não poderia deixar de ser mencionado), os sermões apavorantes e mal preparados de certos líderes religiosos. Agora, por trás de tudo isso existe uma "complexidade hermenêutica", ou seja, o Apocalipse não é um texto de fácil compreensão e interpretação. Ele é tão complexo que durante à história da análise bíblica surgiram várias escolas de interpretação. Que diga-se de passagem, mais atrapalham do que ajudam. 

O objetivo deste texto é tentar fazer do Apocalipse uma literatura simples e de fácil compreensão. E mostrar que de forma alguma ele fala do "fim do mundo", pelo contrário, à sua mensagem é voltada principalmente para à vida presente, aqui e agora.  

1. O CONTEXTO HISTÓRICO.
Segundo à tradição cristã o autor do Apocalipse foi o apóstolo João. Mas, existe outro ponto de vista de que foi outra pessoa (que também era conhecido como João, mas não era um dos apóstolos de Cristo) que escreveu as revelações do Apocalipse. O maior argumento para isso é que se compararmos o estilo literário do Apocalipse com o estilo literário do evangelho de João, se constatará uma grande diferença entre ambos. O Apocalipse é essencialmente simbólico, e o evangelho é narrativo. Com isso levanta-se a hipótese de que não foi o mesmo autor que escreveu as duas literaturas, mas pessoas diferentes. No entanto, não vamos perder tempo com esse detalhe. O foco principal é tentar compreender o texto apocalíptico. 

Cronologicamente (mas sem muita comprovação) o apocalipse foi escrito entre os anos 80 e 90 d.C., ou seja, quase no final do primeiro século da era cristã. Se realmente foi o apóstolo João quem escreveu essa literatura, então ele foi o último dos apóstolos que ainda nesta época estava vivo. Ele se encontrava exilado em uma ilha chamada Patmos. A causa deste exílio foi à perseguição feita pelo imperador Domiciano. Os cristãos não veneravam as divindades pagãs dos romanos e nem reverenciavam o imperador com deus. Esta atitude dos antigos cristãos gerou antipatia e a hostilidade do governo contra eles. Assim, muitos foram presos, mortos ou exilados, como foi a caso de João.

"O repúdio à autoridade mais elevada no império era considerado traição punível por meio de execução ou exílio. Para os cristãos, a mais elevada autoridade sobre a terra e no céu era o Senhor Jesus Cristo. render homenagem ao imperador equivalia a abandonar o Mestre que os redimiu. Para os romanos, o Cristianismo se tornara uma religião exclusivista que não tolerava nenhuma compromisso, pois seus seguidores falavam do reino de Deus, no qual Jesus governava como rei. Em virtude de sua adesão à fé cristã, os cristãos como uma classe tinham que suportar perseguição nas mãos do oficiais romanos que eram designados a reforçar a religião do estado em cada cidade e vila. Esses oficiais tinham a autoridade de punir as pessoas que se recusassem a honrar a César, executando-os ou os exilando-os" (KISTEMAKER, 2004, p. 57).

A forma mais coerente de se entender o Apocalipse é justamente entendendo o contexto histórico, político e social onde ele foi gerado. Quando isso é levado em consideração muitas "crendices" e "superstições" são desfeitas. O Apocalipse de João é endereçado a sete comunidades cristãs que estão passando por vários problemas internos e externos. São elas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia. Mas é necessário afirmar que as únicas coisas que existem dessas comunidades hoje são somente as ruínas. Essas comunidades deixaram de existir há muito tempo. 

Boa parte do simbolismo do Apocalipse deve ser entendido como uma resposta de Deus à opressão política e religiosa que os cristãos estavam sofrendo por parte dos romanos. A mensagem apocalíptica não está falando, essencialmente, das coisas do futuro que ainda iriam acontecer. Mas sim, da realidade do mundo presente. Em suma, à mensagem apocalíptica é para a vida presente e não para um futuro distante. 

2. AS CHAVES PARA LER E INTERPRETAR O APOCALIPSE.
A palavra Apocalipse significa ”revelação”, mas quando ele é aberto parece que não há muita coisa para ser revelada. Este livro tem um emaranhado simbólico e figurativo que causa muita confusão na cabeça das pessoas. Esse é o principal motivo que faz o Apocalipse não ser uma literatura de fácil compreensão, e com isso as pessoas desistem de lê-lo.  

"Ao abrir o Apocalipse ficamos impressionados. Muita gente se assusta e desiste. Alguns acham que o fim do mundo está próximo. Outros utilizam esse livro para condenar pessoas e religiões. Outros, ainda, acham que o Apocalipse aconselha os empobrecidos a desistir da luta, pois só na outra vida é que as coisas poderão mudar. [...]. Então a gente se pergunta: Será que vale a pena começar a ler o Apocalipse? E se vale a pena, quais são as chaves que abrem as portas dessa "casa"? E, uma vez abertas as portas, o que fazer, de modo que o Apocalipse não se torne uma "casa assombrada", cheia de fantasmas e de pesadelos? (BORTOLINI, 2016, p. 7).

Sem dúvida os destinatários para os quais o Apocalipse foi endereçado, compreendiam muito bem todo o simbolismo dele. No entanto, o leitor contemporâneo não consegue entender muita coisa. A explicação para isso é que o autor do Apocalipse não tinha o propósito de escrever para às futuras gerações de cristãos. O objetivo dele era resolver uma situação especifica do seu tempo e contexto. 

Mas isso não é motivo para desanimar. Felizmente há uma vasta literatura escrita que auxilia na pesquisa e estudo do Apocalipse. Com isso vejamos as sete chaves para se ler e entender o Apocalipse de um modo simples e prático.

a) O Apocalipse como um livro de resistência: Resistir contra quem? Contra à opressão e injustiça do imperialismo romano. Quando o Apocalipse foi escrito as comunidades cristãs estavam sendo oprimidas e perseguidas pela tirania do Império romano. O simbolismo do Apocalipse servia como uma espécie de "código secreto" que somente os cristãos entendiam. A mensagem apocalíptica é um estimulo para que as comunidades se unissem e resistissem contra o governo romano opressor. Essa chave mostra que o Apocalipse não é um livro que incentiva à alienação, ou seja, que os cristãos ficassem parados apenas "sonhado" com uma vida melhor no céu, e que tivessem uma atitude de indiferença para as coisas da vida presente. O Apocalipse é um livro de resistência e não de alienação. 

b) O Apocalipse como um livro de denúncia profética: A denúncia é uma característica dos profetas.  Os profetas do Antigo Testamento denunciavam a injustiça e a opressão por parte dos governos injustos. O autor do Apocalipse toma emprestado essa virtude dos antigos profetas e a aplica à situação em que ele e os outros cristãos estavam enfrentando. "E isso que o livro do Apocalipse deseja ser: um livro de denúncia profética que leva a resistir. Sem essa chave ele perde toda a força que estimulou os profetas do passado e do presente" (BORTOLINI, 2016, p. 9). 

c) O Apocalipse como livro de celebração"Feliz aquele que lê e aqueles que escutam as palavras desta profecia, se praticarem o que nela está escrito. Pois o tempo está próximo" (Ap. 1.3). Se Cristo venceu, os seus servos também venceram. Essa é a mística do Apocalipse. E essa mística trás para os cristãos que estavam (e estão) sendo perseguidos e oprimidos à certeza que de a vitória sobre toda injustiça chegará. O Apocalipse fala de um novo céu e uma nova terra aqui e agora. O Apocalipse não afirma que o mundo acabará um dia. 

"O Apocalipse não deixa dúvida: a nova sociedade não é algo que Deus prepara na outra vida; pelo contrário, ela tem suas bases em nossa história. [...] O Apocalipse, portanto, não fala do fim do mundo, e sim do modo como Deus quer que seja a nossa sociedade hoje" (BORTOLINI, 2016, p. 10).

d) O Apocalipse como livro de testemunho: O cristão que resiste e denuncia o sistema político opressor, está colocando sua vida em risco. O martírio é um exemplo de testemunho de fé e de resistência contra à opressão e a injustiça do imperialismo romano. Sempre que o Apocalipse fala sobre a "besta, falso profeta e a Babilônia", ele está diretamente se referindo ao poder político e religioso dos romanos. Qualquer pessoa que não recebesse a marca da Besta, que talvez pudesse se referir ao culto ao imperador romano. Seria severamente perseguido e morto. Provavelmente vários cristãos perderam suas vidas por testemunharem que Jesus era rei e não César. 

e) O Apocalipse como livro de felicidade: O Apocalipse chamada de bem-aventurados, ou seja, felizes todos os que ouvem e aceitam a sua mensagem. Existem 7 bem-aventuranças por todo o livro do Apocalipse (1.3; 14.13;16.15; 19.9;20.6; 22.7; 22.14). O número 7 é sinônimo de perfeição. Isso mostra que à mensagem de felicidade apocalíptica é perfeita. 

f) O Apocalipse é um livro de urgência: A urgência não está atrelada à crença no fim literal do mundo. Isso é algo sem fundamento. A urgência apocalíptica está ligada as questões existências terrenas. É urgente resistir e denunciar contra à opressão do imperialismo romano. Não somente deste, mas também de qualquer tipo de imperialismo que apareça durante a história.

g) O Apocalipse um livro de esperança: O Apocalipse não traz medo. Pelo contrário, ele tem uma mensagem de esperança para os cristãos oprimidos. As comunidades que lutam por um mundo melhor são consoladas pela mensagem de esperança apocalíptica. O Apocalipse mostra que os inimigos da Igreja serão derrotados pelo poder do "Cordeiro de Deus", e Ele reinará pelos séculos dos séculos. Tudo isso está ligado a vida presente, e não a um futuro distante.   

Estas sete chaves tem o objetivo de proporcionar um entendimento mais simples e prático do Apocalipse. Elas procuram fazer do Apocalipse um livro mais imanente, isto é, mais perto da terra. E também mais próximo da realidade social e religiosa das comunidades cristãs contemporâneas. 


Fontes:
BORTOLINI, José. Como ler o Apocalipse. São Paulo. Paulos, 2016.
KISTEMAKER, Simon. Apocalipse: comentário do Novo Testamento. São Paulo. Cultura cristã, 2004.

15 de fevereiro de 2017

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA BÍBLIA - PARTE III


Nesta terceira e última parte de nosso estudo sobre à formação histórica da Bíblia, vamos descobrir como foi criado o Novo Testamento cristão. Católicos e protestantes discordam sobre a quantidade de livros que compõem o Antigo Testamento (Bíblia hebraica), mas no que tange ao Novo Testamento não há entre os dois grupos qualquer discordância.  

Quais foram os fatores históricos que coagiram à Igreja primitiva a escolher "somente" 27 livros (Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 e 2 Corintios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Filemom, Hebreus, Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse) que hoje compõem o cânon do Novo Testamento? Sem dúvida um desses fatores foi o surgimento de grupos heréticos como: marcionistas, montanistas e gnósticos. 

Como ainda não existia uma coleção fechada de livros sagrados, esses grupos estavam livres para selecionarem os livros que estivessem de acordo com suas preferências e opiniões particulares. E essa tendência continua muito viva. Na atualidade à Bíblia está fechada, porém, há muitos cristãos que são seletivos na leitura dela, escolhem apenas às passagens que concoedem com suas intenções e interpretações particulares.

perseguição decretada pelo Imperador Diocleciano foi outro fator histórico que levou à Igreja primitiva a escolher e preservar os livros que formariam o cânon bíblico cristão. 

"Um dos fatores decisivos que levou os primeiros cristãos a aceitar como sagrados alguns livros adotados em comunidade cristãs particulares foi a perseguição (303-313 EC) aos cristãos desencadeada pelo imperador romano Diocleciano. Diocleciano expediu um édito ordenando que os cristãos entregassem seus livros sagrados às autoridades para serem queimados. Ele lançou a última perseguição extensiva a todo o império em 23 de fevereiro de 303. Os motivos dessa investida não são muito claros, mas provavelmente deveu-se à influência crescente dos cristãos que não apoiavam o sistema religioso seguido pela maioria da população no império. Os atos de hostilidade mais flagrantes contra os cristãos são bem conhecidos: detenções, prisões, confisco de bens e propriedades, tortura e a própria morte, caso os cristãos se recusassem a entregar seus livros sagrados" (MCDONALD, 2013, p. 199). 

O sistema religioso romano era politeísta, os romanos veneravam várias divindades e até mesmo o próprio imperador. Historicamente os cristãos não acreditavam nos deuses do panteão romano, eles unicamente prestavam culto a um único Deus. Existiu sim uma intolerância religiosa contra os cristãos por parte do governo. A preservação dos textos sagrados, que futuramente seriam incluídos no cânon bíblico, era uma questão de vida ou morte. Vida por que eles dariam sustentação à doutrina da Igreja, e morte por que sem eles às futuras gerações de cristãos não conheceriam à vida e os ensinos de Jesus. 

A influência política de Constantino sobre a Igreja também contribuiu para a formação e canonização da Bíblia cristã. Se Diocleciano perseguiu a igreja cristã, Constantino a acolheu e fez dela a "religião oficial do Império Romano". 

"Existem evidências de que Constantino impulsionou as igrejas para uma uniformidade até então inexistente. É indiscutível que o reinado de Constantino caracterizou um momento de transição muito importante para a Igreja, que de comunidade perseguida por um governo pagão passou a ter um relacionamento longo e harmonioso com o Estado. No início, essa relação foi especificamente benéfica para as igrejas, e com o tempo produziu mudanças profundas e duradouras na organização e missão da Igreja. [...] Isso se deu, primeiro, pelo Édito de Milão, em 313, que concedeu liberdade religiosa a todos os súditos romanos, não apenas aos cristãos. Os benefícios para os cristãos aumentaram mais tarde, inclusive, quando Constantino ordenou a reparação ou a reconstrução dos edifícios da Igreja danificados ou destruídos durante as implacáveis perseguições dos anos 303-313, tudo a expensas do erário público" (MCDONALD, 2013, p. 205).

Com Constantino, cristianismo e Estado andavam juntos. Depois dessa mudança à Igreja cristã nunca mais foi a mesma. Por um lado, ela estava em paz para elaborar sua doutrina e escolher os livros que iriam compor o que conhecemos hoje como Novo testamento. Mas também ela estava submissa às ordens de Constantino, ou seja, ela não era totalmente livre. Há historiadores que duvidam da suposta "conversão" de Constantino ao cristianismo. 

"Depois de converter-se, continuou a cultuar o deus pagão do seu pai e revelou tendências para um cristianismo sincretista, em que identificava o Deus cristão como o sol. Ele transformou o primeiro dia da semana (Dia do Senhor) em feriado e chamou-o de "venerável dia do sol" (Sunday, em inglês). [...] A conversão de Constantino, não obstante, foi um evento histórico dos mais importantes para os cristãos, levando a Igreja a uma verdadeira nova era. [...] O envolvimento de Constantino nos assuntos da Igreja foi grande. Independentemente do convite que recebeu dos cristãos para ajudar a resolver atritos existentes na Igreja, quase desde o início ele considerou dever seu envolver-se em inúmeras decisões das igrejas" (MCDONALD, 2013, p. 206).

Semelhante aos seus antecessores Constantino zelava pela uniformidade do seu reinado, isto é, todos deveriam ter o mesmo pensamento. Controvérsias e desuniões deveriam ser combatidas. Ele viu que os cristãos eram muitos desunidos em questões de doutrina, sempre havendo debates e controvérsias entre eles (e qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência). Muito provavelmente Constantino não entendia nada de teologia, mas mesmo assim ele determinava que houvessem concílios e que as controvérsias dentro da igreja fossem resolvidas. Ironicamente que mandava na Igreja não eram os bispos, mas o Imperador. Isso mostra que a relação entre política e religião sempre será problemática!

Mas foi no reinado de Constantino que se deu início à escolha e canonização dos livros que iriam compor à Bíblia cristã. Esse processo durou quase três séculos, desde o início do ministério de Jesus até a época de Constantino. Tudo isso levanta muitas perguntas e dúvidas. Por que esses livros e não outros? Como foi que a Igreja fez para saber o que era ou o que não era sagrado?  Vejamos alguns critérios essenciais, mas é bom ficar claro que esses critérios são limitados e podem ter erros.

1. Autoridade apostólica - "Uma vez que o próprio Jesus não deixou qualquer documento escrito, os escritos disponíveis à igreja dotados de maior autoridade foram aqueles procedentes de seus apóstolos" (BRUCE, 2015, p. 212). 

2. Antiguidade - "Se um escrito era obra de um apóstolo ou de alguém intimamente associado a um apóstolo, deveria pertencer à era apostólica. Escritos de data posterior, fossem quais fossem seus méritos, não poderiam ser incluídos entre os livros apostólicos ou canônicos" (BRUCE, 2015, p. 235).

3. Ortodoxia - "Por ortodoxia eles queriam dizer a fé apostólica, a fé estabelecida nos escritos apostólicos não questionados e mantidos nas igrejas que os apóstolos tinham fundado" (BRUCE, 2015, p. 235).

4. Catolicidade - "Uma obra que desfrutasse apenas de reconhecimento local, provavelmente não seria aceita como parte do cânon da Igreja católica. Entretanto, uma obra que fosse reconhecida pela maior parte da igreja católica, provavelmente receberia reconhecimento universal mais cedo ou mais tarde" (BRUCE, 2015, p. 237).

5. Uso tradicional - "O que foi sempre crido (ou praticado) é o fator mais poderoso na preservação da tradição. Inovações sugeridas têm sido regularmente resistidas com o argumento: "Mais foi assim que sempre nos foi ensinado" ou "... que sempre temos feito" (BRUCE, 2015, p. 238).

6. Inspiração - "Por muitos séculos a inspiração e a canonicidade estiveram intimamente ligadas ao pensamento cristão: crê-se que obras foram incluídas no cânon porque eram inspiradas; uma obra era reconhecida como inspirada porque estava no cânon" (BRUCE, 2015, p. 239).

Um detalhe que não pode deixar de ser dito, é que nem todos os livros que fazem parte do Novo Testamento se enquadram em todos esses critérios. Por exemplo, os evangelhos são anônimos e ninguém sabe que foi quem escreveu à carta aos Hebreus. Mas a "tradição" afirma que esses documentos foram escritos por apóstolos ou por pessoas ligadas a eles.  

Para finalizar concluímos que nada mais pode ser feito. A Bíblia agora é um livro fechado. Não é possível acrescentar qualquer outro livro ao cânon bíblico. No entanto, existe "uma Bíblia dentro da Bíblia", o que quero dizer com isso? É possível que as pessoas sejam seletivas em sua preferência aos livros da Bíblia. Há livros que são mais lidos, menos lidos e outros até mesmo desprezados pelas pessoas. Em suma, as pessoas escolhem o que mais lhe agrada ou convém. 


Fontes.
BRUCE, F. F. O cânon das Escrituras. Hagnos, 2015.
MCDONALD, Lee Martin. A origem da Bíblia. Paulos, 2013.

9 de fevereiro de 2017

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA BÍBLIA - PARTE II

Continuando nosso estudo sobre a formação histórica da Bíblia, nesta segunda parte fixaremos nossa atenção sobre a formação histórica das Escrituras cristãs ou Novo Testamento. Logo de início deve ficar bem claro que Jesus e seus primeiros seguidores eram judeus, e como tais conheciam e usavam a Bíblia hebraica para fundamentar seus ensinos e pregações. Os 27 livros que formam hoje Novo testamento cristão eram apenas o "registro" dos ensinos e ações de Jesus e de seus primeiros seguidores. Para eles "Escritura sagrada" era somente a Bíblia hebraica. Os livros do Novo testamento só foram incluídos nessa categoria muitos anos depois.

"Não temos nenhuma prova convincente de que a Igreja tenha nascido já dispondo de um cânone bíblico fixo (um Antigo Testamento), mas o precedente de uma Escritura sagrada já estava bem arraigada na comunidade judaica muito antes do nascimento de Jesus. [...] Os primeiros cristãos acreditavam que os desígnios e a vontade de Deus eram comunicados através da palavra escrita das Escrituras de Israel. À medida que foi se desenvolvendo, porém, a Igreja sentiu que, paralelamente ao uso das Escrituras que recebera como herança dos seus irmãos judeus, era muito importante adotar a sua própria coleção de escritos para fins de culto, instrução e testemunho" (MCDONALD, 2013, p.129).

O cristianismo primitivo em seus primórdios não possuía ainda um cânon bíblico fechado. Cânon vêm de uma palavra grega que significa "regra", "norma" ou "padrão", que é à coleção de livros sagrados que constituem a regra de fé e prática do cristianismo. Os livros que fazem parte dessa lista são considerados canônicos e são a base fundamental para a construção do pensamento e da ética cristã.

Os que ficaram fora dessa lista são conhecidos como apócrifos (escondido), que em seu conteúdo há ensinos que foram considerados heréticos pelos cristãos. Mas por incrível que pareça alguns desses livros "excluídos" já foram considerados como Escritura sagrada por alguns cristãos. Como por exemplo, O pastor de Hermas e o Didaquê

A principal autoridade religiosa para os primeiros cristãos não era um livro, mas a vida e os ensinamentos orais de Jesus. E os especialistas em estudos bíblicos concordam que foi somente a partir do século II d.C., que começou a se registrar escrituristicamente o que Jesus fez e ensinou. "O que Jesus disse e fez era em sentido muito real o "cânone" (autoridade definitiva) para os seus seguidores" (MCDONALD, 2013, p. 133). 

Podemos supor que a ideia "sola scriptura" (somente a Escritura) tão defendida pela Reforma Protestante do século XVI, era algo estranho para os primeiros seguidores de Jesus. Já que eles ainda não tinham uma coleção fechada de livros sagrados.

Será que a Bíblia é realmente a Bíblia? Considerando o contexto histórico do cristianismo antigo, é possível afirmar que existiram várias Bíblias. Quando em um lugar não existe consenso sobre o que é ou o que não é "regra de fé", abre-se uma brecha para que um indivíduo ou grupo escolha (segundo a sua opinião) à literatura sagrada que mais lhe convenha ou agrade. Existiram vários evangelhos, várias epístolas ou cartas e vários apocalipses. Mas no meio de toda essa avalanche literária o que é verdadeiro ou falso?

Historicamente à primeira pessoa que tomou à iniciativa de criar um cânon bíblico cristão foi Marcion de Sinope, que foi considerado como "herege" pela liderança religiosa da Igreja antiga. É bom esclarecer que herege era um termo pejorativo que a Igreja dominante usava para desqualificar qualquer indivíduo que pensasse diferente dela. Ou seja, nem todos os que eram chamados de hereges poderiam ser considerados como tais. E provavelmente houve muitas injustiças! 

"Marcion é a primeira pessoa conhecida por nós que publicou uma coleção fixa do que viríamos a chamar de livros do Novo Testamento. Outros podem tê-lo feito antes dele. Se o fizeram, disso não ficou registro ou conhecimento. Ele rejeitou o Antigo Testamento, alegando que não tinha relevância ou autoridade para os cristãos. Sua coleção, por isso, se apresentava como uma Bíblia inteira. Marcion nasceu por volta de 100 d. C. em Sinope, porto marítimo na costa da Ásia Menor do mar negro. Seu pai foi um dos líderes na igreja daquela cidade. Foi criado na fé apostólica. De todos os apóstolos, o que mais fortemente apelava ao seu gosto era Paulo, a quem ficou apaixonadamente devotado, concluindo, por fim, que fora o único apóstolo a preservar o ensino de Jesus em sua pureza. Ele abraçou com inteligencia e ardor o evangelho paulino da justificação pela graça divina, sem qualquer obra da lei. [...] Além de considerar Paulo o único apóstolo fiel de Cristo, Marcion sustentava que os apóstolos originais haviam corrompido o ensino de seu Mestre com uma mistura de legalismo. Ele foi além de rejeitar o Antigo Testamento; ele distinguiu entre o Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo Testamento. Esse distinção de duas divindades, cada uma com sua existência independente, trai a influência do gnosticismo no pensamento de Marcion" (BRUCE, 2015, p. 123).

Sem dúvida Marcion foi uma ameaça para à ortodoxia da Igreja cristã antiga. Aqui é possível afirmar que a "heresia" contribuiu, de certa forma, para despertar os cristãos sobre a importância de ter uma coleção fechada de livros sagrados. As ideias de Marcion foram rejeitadas pela Igreja, e ele foi excomungado da Igreja, e com algum tempo fundou sua própria comunidade religiosa. 

"A Bíblia de Marcion" era composta pelos seguintes livros: Gálatas, Corintios (1 e 2), Romanos, Laodicenses (= Efésios), Colossenses, Filipenses e Filemon. Nem todas as epístolas do apóstolo Paulo estão nesta lista. Por trás de tudo isso existe algo chamado de sentimento de revolta contra a religião dominante. 

Mas essa história não termina aqui na parte III continuaremos!


Fontes:
BRUCE, F.F. O cânon das Escrituras. Hagnos, 2015.
MACDONALD, Lee Martin. A origem da Bíblia. Paulos, 2013. 

3 de fevereiro de 2017

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA BÍBLIA - PARTE I


Desconheço outro livro na cultural ocidental que seja tão lido, estudado, analisado, comentado, questionado, reverenciado, amado e odiado quanto à Bíblia. Ela tem moldado a vida e a visão de mundo de milhares de pessoas ao redor do planeta. Ela é livremente lida em países que defendem a liberdade de religião e culto, mas é proibida em países fechados e sem liberdade religiosa. Escrever sobre à formação histórica da Bíblia é algo um tanto complexo, por que existem várias lacunas históricas e obscuridades sobre como esse processo de formação foi feito. No entanto, há muita literatura e fontes maduras e especializadas que tornam possível um estudo básico e substancial sobre esse tema. 

Devemos ter consciência de uma coisa: a Bíblia não caiu pronta do céu. Ela foi sendo escrita, reescrita e copiada durante anos por vários autores. Alguns especialistas defendem que foram ao todo quarenta pessoas que escreveram os livros da Bíblia, outros supõem que foram trinta e seis. E um detalhe interessante é que alguns desses escritores bíblicos são anônimos, não se sabe o nome, onde moravam, se tinha família, qual era a sua origem, etc. Seja como for devemos saber que os autores bíblicos viveram em contextos diferentes, e alguns deles nem se conheciam pessoalmente.

O principal objetivo deste texto é saber como a Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento (que diga-se de passagem, foi a Escritura que Jesus e seus primeiros seguidores usaram), foi formada tornando-se assim o texto sagrado dos judeus e dos primeiros cristãos. A Bíblia hebraica foi sendo formada em uma época onde o conceito de Escritura sagrada já estava bem difundido. Os antigos judeus tinham plena consciência de que a revelação de Deus poderia ser escrita e preservada para que as novas gerações também pudessem saber qual seria a vontade de Deus para eles. 
"Os judeus do séc. I não tinham a mínima dúvida de que a palavra e a vontade de Deus haviam sido transmitidas através de palavras escritas; as dúvidas existentes limitavam-se à composição dessas coleções. Todos os grupos religiosos de Israel e o próprio Jesus haviam aceitado inúmeros textos religiosos judaicos como Escritura sagrada" (MCDONALD, 2013, p. 61).
Os livros que hoje fazem parte da Bíblia hebraica são canônicos, ou seja, são reconhecidos com "a regra de fé e prática" da comunidade judaica. São esses livros que no passado, e ainda hoje, preservam à identidade do povo judeu. Mas por que esses livros e não outros? Sabe-se muito bem, que além dos livros que são reconhecidos como Escritura sagrada, existiram outros que pertenciam a mesma categoria, mas ficaram de fora da Bíblia. 

E esses livros “excluídos” são conhecidos como "apócrifos e pseudoepígrafos". Mas qual foi o critério usado para selecionar os livros que iriam fazer parte da Bíblia hebraica? Uma forma usada pelos sábios judeus para identificar os livros sagrados foi uma técnica obscura conhecida como "sujar as mãos" 
"No final do séc. I EC ou início do II e seguintes, alguns judeus empregavam a expressão "sujar as mãos" para se referir à sua literatura sagrada. Neste período, alguns judeus começaram os debates sobre quais livros "sujam as mãos" ritualmente, isto é, quais textos religiosos são Escritura sagrada. O significado dessa expressão é um tanto obscuro, mas ela se refere aos livros que os judeus consideravam sagrados. [...] "Sujar as mãos" era uma referência a sacralidade dos livros sagrados. Aceitar a propriedade das Escrituras de sujar as mãos era uma forma de aceitar seu caráter sagrado" (MCDONALD, 2013, p. 119).  
Podemos supor que se um livro fosse inspirado por Deus ele iria sujar as mãos da pessoa que o manuseasse. Os que não sujassem as mãos, não eram reconhecidos como sagrados. Já os cristãos tinham outra forma de identificar os livros sagrados (mas isso é assunto de outra postagem). Até aqui ficou claro como é complexo descobrir como foi esse processo de seleção dos livros que iriam fazer parte da Bíblia Hebraica.  

Mas outro fator de muito peso nesse processo é a crença pessoal da comunidade judaica. Em muitas situações à religião não trabalho com fatos, mas sim, com crenças. Com isso em mente é possível dizer que os livros que fazem parte da Bíblia hebraica hoje refletem a crença religiosa dos judeus. Mas mesmo assim houve muitas divergências sobre isso. 

Vejamos agora as diferenças entre as Bíblias hebraica, católica e protestante quanto ao número de livros que as compõem.

HEBRAICA.
1. Torá (Pentateuco) - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
2. Profetas (Nebiim) - Anteriores: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis; Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.
3. Escritos (Ketubim) - Salmos, Provérbios, Jó.
4. Cinco rolos (Hamesh megillot) - Cântico dos cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester, Daniel, Esdras-Neemias, 1-2 Crônicas. 

CATÓLICA
1. Pentateuco - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
2. Livros históricos - Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis, 1 Crônicas, 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Tobias, Judite, Ester, 1 Macabeus, 2 Macabeus. 
3. Livros sapienciais - Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos cânticos, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico. 
4. Livros proféticos - Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel (+ 3 acréscimos: oração de Azarias, cântico dos três jovens, Bel e o dragão), Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. 

PROTESTANTE
1. Pentateuco - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
2. Livros históricos - Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis, 1 Crônicas, 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester.
3. Livros poéticos - Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cânticos dos cânticos.
4. Livros proféticos - Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.

Como se pode observar existem livros na Bíblia católica que não existem na Bíblia hebraica e nem na protestante. Para os protestantes radicais esses livros são "apócrifos", isto é, livros de conteúdo duvidoso e herético, mas isso é apenas preconceito. 
"No período da Reforma, os protestantes contestaram o valor religioso desses textos. No entanto, os apócrifos são obras interessantes e originais - "bons e úteis para se ler" dirá Lutero -, contendo vários gêneros literários: autobiografias, orações, passagens apocalípticas, salmos, etc. [...] Já para o Antigo testamento, o termo é utilizado quando se refere aos livros que os católicos chamam de "deuterocanônicos", isto é, aqueles que integram uma segunda lista (deuteros, segunda; nomos, lei), como, por exemplo, os livros de Tobias, Baruc, Judite, Eclesiástico etc.)". (Dicionário Histórico de religiões, p. 43).
Há muitas informações sobre a formação histórica da Bíblia hebraica que não sabemos e vamos continuar sem saber. Os especialistas em estudos bíblicos apenas nos oferecem "pequenas luzes" sobre como esse processo aparentemente foi feito. Mas essa história não termina aqui, na parte II continuaremos.


Fontes: 
AZAVEDO, Antonio C. do Amaral. Dicionário histórico de religiões. Nova fronteira, 2002. 
MCDONALD, Lee Matin. A origem da Bíblia. Paulinas, 2013.