1 de março de 2017

A BÍBLIA E O ALCORÃO - Um estudo comparado.


Tanto judeus como cristãos consideram a Bíblia como a palavra de Deus. Ela é a revelação de Deus para a humanidade. Por outro lado, para a comunidade muçulmana o Alcorão é a autentica palavra de Deus. Mas o que existe de comum e divergente entra a Bíblia e o Alcorão? Este é o objetivo deste sucinto texto: colocar a Bíblia e o Alcorão frente a frente, e com isso descobrir quais são os pontos comuns e os divergentes entre esses dois livros sagrados. 

1. A Bíblia dentro do Alcorão. 
Judaísmo, cristianismo e islamismo são religiões de revelação. Elas tem o objetivo de tornar Deus (Javé, Jesus ou Allá) conhecido. Das três o Judaísmo é a crença monoteísta mais antiga. Em parte, o cristianismo e o islamismo tomam emprestado alguns princípios das escrituras judaicas para fundamentar as suas doutrinas e escrituras. Sem dúvida Maomé conhecia a Torá judaica e o Evangelho cristão.
"Maomé conhecia antes de tudo o Pentateuco, especialmente o Livro do Gênesis. Ele conhecia tradições provenientes dos livros históricos, tal como a história de Davi e Golias (Sura 2.250), conhecia Davi e Salomão (34.10-12), mas não conhecia os profetas e os livros sapienciais. [...] As constantes repetições das histórias da criação, de Abraão e de Moisés são as que mais causam impressão de que o Antigo Testamento esteja tão amplamente presente no Alcorão, embora as variantes narrativas possam desfazer um pouco os estereótipos de estrutura narrativa" (GNILKA, 2006, p. 64).
Nenhuma religião é singular. Toda nova religião é influenciada ou nasce de outra mais antiga. Uma coisa comum entre o Evangelho cristão e o Alcorão islâmico, é que ambos buscaram no Antigo Testamento judaico à base para se fundamentarem. Aqui encontramos um ponto de convergência.

Mas como foi que Maomé teve contato com as Escrituras hebraicas e cristãs? Infelizmente há pouquíssimas fontes históricas que mostrem detalhadamente esse encontro "ecumênico". Conjectura-se que em Meca e Medina (que foram as duas cidades árabes onde Maomé exerceu sua influência), provavelmente haviam comunidades judaicas e cristãs. Há uma passagem no Alcorão onde Maomé cita "as tretas" que existiam entre judeus e cristãos: 

Os judeus dizem: "Os cristãos não se baseiam em nada". E os cristãos dizem: "Os judeus não se baseiam em nada". Uns e outros, porém, recitam as Escrituras. E os que nada sabem fazem as mesmas alegações. Deus julgará suas disputas no dia da Ressurreição (Alcorão 2.113).  

Tudo indica também que Maomé tinha algum conhecimento sobre os evangelhos apócrifos. Há trechos do Alcorão que citam os "supostos" milagres que Jesus fez quando era criança.

E Deus dirá a Jesus: "Ó Jesus, filho de Maria, lembra-te de Minha graça sobre ti e sobre tua mãe quando te fortaleci com o Espírito Santo, e falaste aos homens no berço e na tua idade madura. E quando te ensinei o Livro, a sabedoria, a Torá e o Evangelho, e quando, Eu permitindo, modelaste com barro uma figura de pássaro e sopraste nela, e ela era pássaro. E quando, com Minha permissão, curava os cegos e os leprosos e ressuscitava os mortos. E quando te protegi contra os filhos de Israel na época em que lhes dava as provas, e os descrentes dentre eles diziam: 'Tudo isso não passa de magia.' (Alcorão 5. 110). 

Mas por que Maomé consultou as Escrituras judaicas e cristãs? Será que as revelações divinas que ele recebeu através do anjo Gabriel não eram suficientes? Pode-se supor que o discurso monoteístas das Escrituras judaico-cristãs era importante para Maomé, porque esse também era o seu discurso. Abraão, Moisés e Jesus foram rejeitados pelos seus. Maomé também foi rejeitado. É possível dizer que Maomé encontrou uma inspiração nos personagens bíblicos, apesar da tradição islâmica considerar Maomé como o último profeta de Deus. 

2. Pontos teológicos. 
Nesta parte descobriremos quais são os pontos convergentes e divergentes entre à Bíblia e o  Alcorão. 

2.1. Convergências.
a) Bíblia e o Alcorão são livros de religiões de revelação, isto é, Deus se revela aos homens através do texto escrito. E esses textos acabaram sofrendo à influência do contexto cultura de onde surgiram.

b) O monoteísmo é um ponto em comum entre o Antigo testamento e o Alcorão. Somente existe um único Deus. Neste caso o politeísmo (adoração a várias divindades) é totalmente rejeitado. O Deus da Bíblia é o Deus do Alcorão. Mas o Alcorão interpreta esse Deus de uma forma diferente. No entanto, o conceito cristão de Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), não defendido no Alcorão. 

c) Bíblia e o Alcorão concordam que Deus criou os céus e terra.

d) No Alcorão Jesus é respeitado como um "grande profeta" de Deus. Maria mãe de Jesus também é muito respeitada.

e) Abraão é o maior elo de ligação entre a Bíblia e o Alcorão. "Abraão é modelo para o Alcorão pelo fato de se ter convertido ao monoteísmo. Para o povo judeu Abraão é o patriarca" (GNILKA, 2006, p. 217).

f) A Bíblia e o Alcorão concordam que a raça humana teve sua origem em Adão. Mas, o entendimento cristão de "pecado original", isto é, que em Adão toda à humanidade caiu em pecado, não encontra apoio do Alcorão. Cada um é responsável pelos seus erros.

g) O Novo testamento e o Alcorão concordam que haverá à ressurreição dos mortos.  

2.2. Divergências.
a) O conceito cristão de que Deus se revelou em Jesus de Nazaré é rejeitado pelo Alcorão. Deus se revelou em um livro, e esse é o Alcorão. 

b) O Alcorão reconhece Jesus como "filho de Maria" e não como "Filho de Deus". A divindade de Cristo é negada pelo Alcorão. A divindade de Jesus defendida pelos cristãos entra em conflito com o monoteísmo. Nesse ponto judeus ortodoxos e muçulmanos andam juntos.  

c) No Alcorão a redenção é produto do esforço humano, ou seja, é o próprio homem que pela sua submissão e obediência aos preceitos corânicos, alcançará a ressurreição. A redenção do ponto de vista cristão, não tem apoio no Alcorão.

d) Na Bíblia Isaac e seus descendentes são os herdeiros de Abraão. No Alcorão é Ismael filho da escrava Agar o verdadeiro descendente abraâmico. Aqui está a origem da guerra entre israelenses e palestinos! 

3. Conclusão.
Podemos ver que existe mais concordância entre o Antigo Testamento judeu e o Alcorão do que com o as Escrituras cristãs. E é notório que o "divisor de águas" é a visão que cada livro tem sobre Jesus. É possível dizer que o maior fundamento da mensagem de Maomé foi o monoteísmo, a crença que existe um único Deus. Assim, a divindade de Cristo e o conceito de Trindade entram em choque com o conceito de Deus corânico.  

Fontes:
O Alcorão: livro sagrado do Islã. 
GNILKA, Joachim. Bíblia e Alcorão: o que os une - o que os separa. São Paulo. Loyola, 2006. 

23 de fevereiro de 2017

NIETZSCHE NÃO ERA ATEU, APENAS NÃO ACREDITAVA NO DEUS DO CRISTIANISMO


O alemão Friedrich Nietzsche é famosamente conhecido como o filósofo que anunciou a "morte de Deus", e por causa disso, muitos o consideram como ateu e inimigo de qualquer tipo de religião. Mas será que isso procede? Será que não existiu algum tipo de religiosidade no autor de Assim falou Zaratustra

O presente texto é uma breve reflexão filosófica e tem como referência a obra Religião em Nietzsche"Eu acreditaria somente num Deus que soubesse dançar", de Mauro Araujo de Sousa. O objetivo é mostrar que nem tudo o que ouvimos falar sobre Nietzsche condiz com a verdade. Que é possível sim encontrar algum tipo de religiosidade em pessoas céticas, ou seja, céticas em relação a um tipo de Deus, mas a outros não. 

Sem dúvida Nietzsche foi um dos pensadores mais importantes do século XIX, suas obras até hoje "fazem a cabeça" de muita gente. Ele nasceu em uma família luterana e seu pai foi ministro luterano. Nietzsche até pensava em seguir carreira eclesiástica, mas mudou de ideia ao ter um encontro com a filosofia. Talvez em algum momento de sua vida ele tenha se decepcionado com a religião de sua família e com isso passou a seguir por outro caminho.  

"O interesse nessa reflexão não é postar Nietzsche frente a denominações religiosas, a partidos religiosos, os quais se fazem a voz de muitas denominações religiosas do Oriente e do Ocidente. Por isso, é muito importante, também nesse viés, que os "deus" em que Nietzsche acreditaria, e que de certo modo já se faz presente - e essa é a leitura aqui - , seja um "deus" completamente diferente de muitos outros aos quais estamos acostumados. [...] Esse "deus' não precisa de nós... Quanto a muito de nós, queremos, e tentamos várias vezes, escapar desse "deus" ... O "deus dançarino" de Nietzsche... Uma provocação... " (SOUSA, 2015, p. 31).
Falar de religião em Nietzsche não é algo muito fácil, isso por que ele faz severas críticas a todos os tipos de religião, em destaque ao Cristianismo. Religião vem da palavra religare, isto é, fazer uma ligação com o que foi desligado. Os homens criam suas religiões com o objetivo de fazerem uma religação com o transcendente ou divino. Os deuses que os homens estão acostumados em conhecer não vivem na terra, mas em um lugar superior. 


O "deus dançarino" de Nietzsche poderia ser um deus que se movimenta e que está na Terra, em muitas situações ele se fundiria com à própria terra. Se existisse uma "religião nietzschiana ela seria essencialmente imanente", isto é, procuraria religar o homem não com o céu, mas com à própria vida terrena. É muito provável que Nietzsche criticava o cristianismo pela influência do dualismo platônico, que indiretamente, foi incorporado no pensamento cristão. Um dualismo que não "religa" mas faz separação. Espírito e corpo, vida e morte, céu e terra. Dualismo era algo que Nietzsche detestava!
"Daí, entendemos que o deus de Nietzsche, que está em Dionísio, que está em todos nós que está na vida, no cosmo enfim, é um deus chamado vontade de potência" (SOUSA, 2015, p. 56).
O "deus dançarino" que Nietzsche poderia acreditar está em todas às parte da terra e da vida humana. Esse deus está sempre em movimento, mudando e evoluindo. Ele habita no mundo e no homem. Na visão nietzschiana à vida humana é sagrada, e é com essa vida sagrada que o religioso nietzschiano deve se religar. "Ora, para Nietzsche, não deve existir uma religião separada da natureza" (SOUSA, 2015, p. 57).

Um retorno ao paganismo? Difícil afirmar. Estar em harmonia com à natureza sempre foi uma prática das religiões antigas. "Deus é tudo, e tudo é deus". Não está comprovado se Nietzsche abraçaria o antigo paganismo, mas uma religiosidade que defende o estar em contato permanente com à natureza, pode ter alguma semelhança com o paganismo. Uma religiosidade da Terra e não do céu. 


É complexo falar de religião em Nietzsche, mas esta breve reflexão mostra que em pessoas céticas pode existir algum resquício de religiosidade.


Fonte:

SOUSA, Mauro Araujo de. Religião em Nietzsche: "Eu acreditaria somente num Deus que soubesse dançar". São Paulo, Paulus, 2015.

15 de fevereiro de 2017

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA BÍBLIA - PARTE III


Nesta terceira e última parte de nosso estudo sobre à formação histórica da Bíblia, vamos descobrir como foi criado o Novo Testamento cristão. Católicos e protestantes discordam sobre a quantidade de livros que compõem o Antigo Testamento (Bíblia hebraica), mas no que tange ao Novo Testamento não há entre os dois grupos qualquer discordância.  

Quais foram os fatores históricos que coagiram à Igreja primitiva a escolher "somente" 27 livros (Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 e 2 Corintios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Filemom, Hebreus, Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse) que hoje compõem o cânon do Novo Testamento? Sem dúvida um desses fatores foi o surgimento de grupos heréticos como: marcionistas, montanistas e gnósticos. 

Como ainda não existia uma coleção fechada de livros sagrados, esses grupos estavam livres para selecionarem os livros que estivessem de acordo com suas preferências e opiniões particulares. E essa tendência continua muito viva. Na atualidade à Bíblia está fechada, porém, há muitos cristãos que são seletivos na leitura dela, escolhem apenas às passagens que concoedem com suas intenções e interpretações particulares.

perseguição decretada pelo Imperador Diocleciano foi outro fator histórico que levou à Igreja primitiva a escolher e preservar os livros que formariam o cânon bíblico cristão. 

"Um dos fatores decisivos que levou os primeiros cristãos a aceitar como sagrados alguns livros adotados em comunidade cristãs particulares foi a perseguição (303-313 EC) aos cristãos desencadeada pelo imperador romano Diocleciano. Diocleciano expediu um édito ordenando que os cristãos entregassem seus livros sagrados às autoridades para serem queimados. Ele lançou a última perseguição extensiva a todo o império em 23 de fevereiro de 303. Os motivos dessa investida não são muito claros, mas provavelmente deveu-se à influência crescente dos cristãos que não apoiavam o sistema religioso seguido pela maioria da população no império. Os atos de hostilidade mais flagrantes contra os cristãos são bem conhecidos: detenções, prisões, confisco de bens e propriedades, tortura e a própria morte, caso os cristãos se recusassem a entregar seus livros sagrados" (MCDONALD, 2013, p. 199). 

O sistema religioso romano era politeísta, os romanos veneravam várias divindades e até mesmo o próprio imperador. Historicamente os cristãos não acreditavam nos deuses do panteão romano, eles unicamente prestavam culto a um único Deus. Existiu sim uma intolerância religiosa contra os cristãos por parte do governo. A preservação dos textos sagrados, que futuramente seriam incluídos no cânon bíblico, era uma questão de vida ou morte. Vida por que eles dariam sustentação à doutrina da Igreja, e morte por que sem eles às futuras gerações de cristãos não conheceriam à vida e os ensinos de Jesus. 

A influência política de Constantino sobre a Igreja também contribuiu para a formação e canonização da Bíblia cristã. Se Diocleciano perseguiu a igreja cristã, Constantino a acolheu e fez dela a "religião oficial do Império Romano". 

"Existem evidências de que Constantino impulsionou as igrejas para uma uniformidade até então inexistente. É indiscutível que o reinado de Constantino caracterizou um momento de transição muito importante para a Igreja, que de comunidade perseguida por um governo pagão passou a ter um relacionamento longo e harmonioso com o Estado. No início, essa relação foi especificamente benéfica para as igrejas, e com o tempo produziu mudanças profundas e duradouras na organização e missão da Igreja. [...] Isso se deu, primeiro, pelo Édito de Milão, em 313, que concedeu liberdade religiosa a todos os súditos romanos, não apenas aos cristãos. Os benefícios para os cristãos aumentaram mais tarde, inclusive, quando Constantino ordenou a reparação ou a reconstrução dos edifícios da Igreja danificados ou destruídos durante as implacáveis perseguições dos anos 303-313, tudo a expensas do erário público" (MCDONALD, 2013, p. 205).

Com Constantino, cristianismo e Estado andavam juntos. Depois dessa mudança à Igreja cristã nunca mais foi a mesma. Por um lado, ela estava em paz para elaborar sua doutrina e escolher os livros que iriam compor o que conhecemos hoje como Novo testamento. Mas também ela estava submissa às ordens de Constantino, ou seja, ela não era totalmente livre. Há historiadores que duvidam da suposta "conversão" de Constantino ao cristianismo. 

"Depois de converter-se, continuou a cultuar o deus pagão do seu pai e revelou tendências para um cristianismo sincretista, em que identificava o Deus cristão como o sol. Ele transformou o primeiro dia da semana (Dia do Senhor) em feriado e chamou-o de "venerável dia do sol" (Sunday, em inglês). [...] A conversão de Constantino, não obstante, foi um evento histórico dos mais importantes para os cristãos, levando a Igreja a uma verdadeira nova era. [...] O envolvimento de Constantino nos assuntos da Igreja foi grande. Independentemente do convite que recebeu dos cristãos para ajudar a resolver atritos existentes na Igreja, quase desde o início ele considerou dever seu envolver-se em inúmeras decisões das igrejas" (MCDONALD, 2013, p. 206).

Semelhante aos seus antecessores Constantino zelava pela uniformidade do seu reinado, isto é, todos deveriam ter o mesmo pensamento. Controvérsias e desuniões deveriam ser combatidas. Ele viu que os cristãos eram muitos desunidos em questões de doutrina, sempre havendo debates e controvérsias entre eles (e qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência). Muito provavelmente Constantino não entendia nada de teologia, mas mesmo assim ele determinava que houvessem concílios e que as controvérsias dentro da igreja fossem resolvidas. Ironicamente que mandava na Igreja não eram os bispos, mas o Imperador. Isso mostra que a relação entre política e religião sempre será problemática!

Mas foi no reinado de Constantino que se deu início à escolha e canonização dos livros que iriam compor à Bíblia cristã. Esse processo durou quase três séculos, desde o início do ministério de Jesus até a época de Constantino. Tudo isso levanta muitas perguntas e dúvidas. Por que esses livros e não outros? Como foi que a Igreja fez para saber o que era ou o que não era sagrado?  Vejamos alguns critérios essenciais, mas é bom ficar claro que esses critérios são limitados e podem ter erros.

1. Autoridade apostólica - "Uma vez que o próprio Jesus não deixou qualquer documento escrito, os escritos disponíveis à igreja dotados de maior autoridade foram aqueles procedentes de seus apóstolos" (BRUCE, 2015, p. 212). 

2. Antiguidade - "Se um escrito era obra de um apóstolo ou de alguém intimamente associado a um apóstolo, deveria pertencer à era apostólica. Escritos de data posterior, fossem quais fossem seus méritos, não poderiam ser incluídos entre os livros apostólicos ou canônicos" (BRUCE, 2015, p. 235).

3. Ortodoxia - "Por ortodoxia eles queriam dizer a fé apostólica, a fé estabelecida nos escritos apostólicos não questionados e mantidos nas igrejas que os apóstolos tinham fundado" (BRUCE, 2015, p. 235).

4. Catolicidade - "Uma obra que desfrutasse apenas de reconhecimento local, provavelmente não seria aceita como parte do cânon da Igreja católica. Entretanto, uma obra que fosse reconhecida pela maior parte da igreja católica, provavelmente receberia reconhecimento universal mais cedo ou mais tarde" (BRUCE, 2015, p. 237).

5. Uso tradicional - "O que foi sempre crido (ou praticado) é o fator mais poderoso na preservação da tradição. Inovações sugeridas têm sido regularmente resistidas com o argumento: "Mais foi assim que sempre nos foi ensinado" ou "... que sempre temos feito" (BRUCE, 2015, p. 238).

6. Inspiração - "Por muitos séculos a inspiração e a canonicidade estiveram intimamente ligadas ao pensamento cristão: crê-se que obras foram incluídas no cânon porque eram inspiradas; uma obra era reconhecida como inspirada porque estava no cânon" (BRUCE, 2015, p. 239).

Um detalhe que não pode deixar de ser dito, é que nem todos os livros que fazem parte do Novo Testamento se enquadram em todos esses critérios. Por exemplo, os evangelhos são anônimos e ninguém sabe que foi quem escreveu à carta aos Hebreus. Mas a "tradição" afirma que esses documentos foram escritos por apóstolos ou por pessoas ligadas a eles.  

Para finalizar concluímos que nada mais pode ser feito. A Bíblia agora é um livro fechado. Não é possível acrescentar qualquer outro livro ao cânon bíblico. No entanto, existe "uma Bíblia dentro da Bíblia", o que quero dizer com isso? É possível que as pessoas sejam seletivas em sua preferência aos livros da Bíblia. Há livros que são mais lidos, menos lidos e outros até mesmo desprezados pelas pessoas. Em suma, as pessoas escolhem o que mais lhe agrada ou convém. 


Fontes.
BRUCE, F. F. O cânon das Escrituras. Hagnos, 2015.
MCDONALD, Lee Martin. A origem da Bíblia. Paulos, 2013.

9 de fevereiro de 2017

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA BÍBLIA - PARTE II

Continuando nosso estudo sobre a formação histórica da Bíblia, nesta segunda parte fixaremos nossa atenção sobre a formação histórica das Escrituras cristãs ou Novo Testamento. Logo de início deve ficar bem claro que Jesus e seus primeiros seguidores eram judeus, e como tais conheciam e usavam a Bíblia hebraica para fundamentar seus ensinos e pregações. Os 27 livros que formam hoje Novo testamento cristão eram apenas o "registro" dos ensinos e ações de Jesus e de seus primeiros seguidores. Para eles "Escritura sagrada" era somente a Bíblia hebraica. Os livros do Novo testamento só foram incluídos nessa categoria muitos anos depois.

"Não temos nenhuma prova convincente de que a Igreja tenha nascido já dispondo de um cânone bíblico fixo (um Antigo Testamento), mas o precedente de uma Escritura sagrada já estava bem arraigada na comunidade judaica muito antes do nascimento de Jesus. [...] Os primeiros cristãos acreditavam que os desígnios e a vontade de Deus eram comunicados através da palavra escrita das Escrituras de Israel. À medida que foi se desenvolvendo, porém, a Igreja sentiu que, paralelamente ao uso das Escrituras que recebera como herança dos seus irmãos judeus, era muito importante adotar a sua própria coleção de escritos para fins de culto, instrução e testemunho" (MCDONALD, 2013, p.129).

O cristianismo primitivo em seus primórdios não possuía ainda um cânon bíblico fechado. Cânon vêm de uma palavra grega que significa "regra", "norma" ou "padrão", que é à coleção de livros sagrados que constituem a regra de fé e prática do cristianismo. Os livros que fazem parte dessa lista são considerados canônicos e são a base fundamental para a construção do pensamento e da ética cristã.

Os que ficaram fora dessa lista são conhecidos como apócrifos (escondido), que em seu conteúdo há ensinos que foram considerados heréticos pelos cristãos. Mas por incrível que pareça alguns desses livros "excluídos" já foram considerados como Escritura sagrada por alguns cristãos. Como por exemplo, O pastor de Hermas e o Didaquê

A principal autoridade religiosa para os primeiros cristãos não era um livro, mas a vida e os ensinamentos orais de Jesus. E os especialistas em estudos bíblicos concordam que foi somente a partir do século II d.C., que começou a se registrar escrituristicamente o que Jesus fez e ensinou. "O que Jesus disse e fez era em sentido muito real o "cânone" (autoridade definitiva) para os seus seguidores" (MCDONALD, 2013, p. 133). 

Podemos supor que a ideia "sola scriptura" (somente a Escritura) tão defendida pela Reforma Protestante do século XVI, era algo estranho para os primeiros seguidores de Jesus. Já que eles ainda não tinham uma coleção fechada de livros sagrados.

Será que a Bíblia é realmente a Bíblia? Considerando o contexto histórico do cristianismo antigo, é possível afirmar que existiram várias Bíblias. Quando em um lugar não existe consenso sobre o que é ou o que não é "regra de fé", abre-se uma brecha para que um indivíduo ou grupo escolha (segundo a sua opinião) à literatura sagrada que mais lhe convenha ou agrade. Existiram vários evangelhos, várias epístolas ou cartas e vários apocalipses. Mas no meio de toda essa avalanche literária o que é verdadeiro ou falso?

Historicamente à primeira pessoa que tomou à iniciativa de criar um cânon bíblico cristão foi Marcion de Sinope, que foi considerado como "herege" pela liderança religiosa da Igreja antiga. É bom esclarecer que herege era um termo pejorativo que a Igreja dominante usava para desqualificar qualquer indivíduo que pensasse diferente dela. Ou seja, nem todos os que eram chamados de hereges poderiam ser considerados como tais. E provavelmente houve muitas injustiças! 

"Marcion é a primeira pessoa conhecida por nós que publicou uma coleção fixa do que viríamos a chamar de livros do Novo Testamento. Outros podem tê-lo feito antes dele. Se o fizeram, disso não ficou registro ou conhecimento. Ele rejeitou o Antigo Testamento, alegando que não tinha relevância ou autoridade para os cristãos. Sua coleção, por isso, se apresentava como uma Bíblia inteira. Marcion nasceu por volta de 100 d. C. em Sinope, porto marítimo na costa da Ásia Menor do mar negro. Seu pai foi um dos líderes na igreja daquela cidade. Foi criado na fé apostólica. De todos os apóstolos, o que mais fortemente apelava ao seu gosto era Paulo, a quem ficou apaixonadamente devotado, concluindo, por fim, que fora o único apóstolo a preservar o ensino de Jesus em sua pureza. Ele abraçou com inteligencia e ardor o evangelho paulino da justificação pela graça divina, sem qualquer obra da lei. [...] Além de considerar Paulo o único apóstolo fiel de Cristo, Marcion sustentava que os apóstolos originais haviam corrompido o ensino de seu Mestre com uma mistura de legalismo. Ele foi além de rejeitar o Antigo Testamento; ele distinguiu entre o Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo Testamento. Esse distinção de duas divindades, cada uma com sua existência independente, trai a influência do gnosticismo no pensamento de Marcion" (BRUCE, 2015, p. 123).

Sem dúvida Marcion foi uma ameaça para à ortodoxia da Igreja cristã antiga. Aqui é possível afirmar que a "heresia" contribuiu, de certa forma, para despertar os cristãos sobre a importância de ter uma coleção fechada de livros sagrados. As ideias de Marcion foram rejeitadas pela Igreja, e ele foi excomungado da Igreja, e com algum tempo fundou sua própria comunidade religiosa. 

"A Bíblia de Marcion" era composta pelos seguintes livros: Gálatas, Corintios (1 e 2), Romanos, Laodicenses (= Efésios), Colossenses, Filipenses e Filemon. Nem todas as epístolas do apóstolo Paulo estão nesta lista. Por trás de tudo isso existe algo chamado de sentimento de revolta contra a religião dominante. 

Mas essa história não termina aqui na parte III continuaremos!


Fontes:
BRUCE, F.F. O cânon das Escrituras. Hagnos, 2015.
MACDONALD, Lee Martin. A origem da Bíblia. Paulos, 2013. 

3 de fevereiro de 2017

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA BÍBLIA - PARTE I


Desconheço outro livro na cultural ocidental que seja tão lido, estudado, analisado, comentado, questionado, reverenciado, amado e odiado quanto à Bíblia. Ela tem moldado a vida e a visão de mundo de milhares de pessoas ao redor do planeta. Ela é livremente lida em países que defendem a liberdade de religião e culto, mas é proibida em países fechados e sem liberdade religiosa. Escrever sobre à formação histórica da Bíblia é algo um tanto complexo, por que existem várias lacunas históricas e obscuridades sobre como esse processo de formação foi feito. No entanto, há muita literatura e fontes maduras e especializadas que tornam possível um estudo básico e substancial sobre esse tema. 

Devemos ter consciência de uma coisa: a Bíblia não caiu pronta do céu. Ela foi sendo escrita, reescrita e copiada durante anos por vários autores. Alguns especialistas defendem que foram ao todo quarenta pessoas que escreveram os livros da Bíblia, outros supõem que foram trinta e seis. E um detalhe interessante é que alguns desses escritores bíblicos são anônimos, não se sabe o nome, onde moravam, se tinha família, qual era a sua origem, etc. Seja como for devemos saber que os autores bíblicos viveram em contextos diferentes, e alguns deles nem se conheciam pessoalmente.

O principal objetivo deste texto é saber como a Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento (que diga-se de passagem, foi a Escritura que Jesus e seus primeiros seguidores usaram), foi formada tornando-se assim o texto sagrado dos judeus e dos primeiros cristãos. A Bíblia hebraica foi sendo formada em uma época onde o conceito de Escritura sagrada já estava bem difundido. Os antigos judeus tinham plena consciência de que a revelação de Deus poderia ser escrita e preservada para que as novas gerações também pudessem saber qual seria a vontade de Deus para eles. 
"Os judeus do séc. I não tinham a mínima dúvida de que a palavra e a vontade de Deus haviam sido transmitidas através de palavras escritas; as dúvidas existentes limitavam-se à composição dessas coleções. Todos os grupos religiosos de Israel e o próprio Jesus haviam aceitado inúmeros textos religiosos judaicos como Escritura sagrada" (MCDONALD, 2013, p. 61).
Os livros que hoje fazem parte da Bíblia hebraica são canônicos, ou seja, são reconhecidos com "a regra de fé e prática" da comunidade judaica. São esses livros que no passado, e ainda hoje, preservam à identidade do povo judeu. Mas por que esses livros e não outros? Sabe-se muito bem, que além dos livros que são reconhecidos como Escritura sagrada, existiram outros que pertenciam a mesma categoria, mas ficaram de fora da Bíblia. 

E esses livros “excluídos” são conhecidos como "apócrifos e pseudoepígrafos". Mas qual foi o critério usado para selecionar os livros que iriam fazer parte da Bíblia hebraica? Uma forma usada pelos sábios judeus para identificar os livros sagrados foi uma técnica obscura conhecida como "sujar as mãos" 
"No final do séc. I EC ou início do II e seguintes, alguns judeus empregavam a expressão "sujar as mãos" para se referir à sua literatura sagrada. Neste período, alguns judeus começaram os debates sobre quais livros "sujam as mãos" ritualmente, isto é, quais textos religiosos são Escritura sagrada. O significado dessa expressão é um tanto obscuro, mas ela se refere aos livros que os judeus consideravam sagrados. [...] "Sujar as mãos" era uma referência a sacralidade dos livros sagrados. Aceitar a propriedade das Escrituras de sujar as mãos era uma forma de aceitar seu caráter sagrado" (MCDONALD, 2013, p. 119).  
Podemos supor que se um livro fosse inspirado por Deus ele iria sujar as mãos da pessoa que o manuseasse. Os que não sujassem as mãos, não eram reconhecidos como sagrados. Já os cristãos tinham outra forma de identificar os livros sagrados (mas isso é assunto de outra postagem). Até aqui ficou claro como é complexo descobrir como foi esse processo de seleção dos livros que iriam fazer parte da Bíblia Hebraica.  

Mas outro fator de muito peso nesse processo é a crença pessoal da comunidade judaica. Em muitas situações à religião não trabalho com fatos, mas sim, com crenças. Com isso em mente é possível dizer que os livros que fazem parte da Bíblia hebraica hoje refletem a crença religiosa dos judeus. Mas mesmo assim houve muitas divergências sobre isso. 

Vejamos agora as diferenças entre as Bíblias hebraica, católica e protestante quanto ao número de livros que as compõem.

HEBRAICA.
1. Torá (Pentateuco) - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
2. Profetas (Nebiim) - Anteriores: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis; Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.
3. Escritos (Ketubim) - Salmos, Provérbios, Jó.
4. Cinco rolos (Hamesh megillot) - Cântico dos cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester, Daniel, Esdras-Neemias, 1-2 Crônicas. 

CATÓLICA
1. Pentateuco - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
2. Livros históricos - Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis, 1 Crônicas, 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Tobias, Judite, Ester, 1 Macabeus, 2 Macabeus. 
3. Livros sapienciais - Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos cânticos, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico. 
4. Livros proféticos - Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruc, Ezequiel, Daniel (+ 3 acréscimos: oração de Azarias, cântico dos três jovens, Bel e o dragão), Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. 

PROTESTANTE
1. Pentateuco - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
2. Livros históricos - Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis, 1 Crônicas, 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester.
3. Livros poéticos - Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cânticos dos cânticos.
4. Livros proféticos - Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.

Como se pode observar existem livros na Bíblia católica que não existem na Bíblia hebraica e nem na protestante. Para os protestantes radicais esses livros são "apócrifos", isto é, livros de conteúdo duvidoso e herético, mas isso é apenas preconceito. 
"No período da Reforma, os protestantes contestaram o valor religioso desses textos. No entanto, os apócrifos são obras interessantes e originais - "bons e úteis para se ler" dirá Lutero -, contendo vários gêneros literários: autobiografias, orações, passagens apocalípticas, salmos, etc. [...] Já para o Antigo testamento, o termo é utilizado quando se refere aos livros que os católicos chamam de "deuterocanônicos", isto é, aqueles que integram uma segunda lista (deuteros, segunda; nomos, lei), como, por exemplo, os livros de Tobias, Baruc, Judite, Eclesiástico etc.)". (Dicionário Histórico de religiões, p. 43).
Há muitas informações sobre a formação histórica da Bíblia hebraica que não sabemos e vamos continuar sem saber. Os especialistas em estudos bíblicos apenas nos oferecem "pequenas luzes" sobre como esse processo aparentemente foi feito. Mas essa história não termina aqui, na parte II continuaremos.


Fontes: 
AZAVEDO, Antonio C. do Amaral. Dicionário histórico de religiões. Nova fronteira, 2002. 
MCDONALD, Lee Matin. A origem da Bíblia. Paulinas, 2013.