Contribuição

Pix: anderson.alvesbarbosa7@gmail.com

16 de novembro de 2021

ÉTICAS EM COMPARAÇÃO: A ética confucionista e a ética calvinista.


RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de fazer um estudo comparado entre a ética confucionista e a calvinista no que concerne à educação, família e o conceito de natureza humana. E encontrar pontos de convergência e divergência entre elas, e descobrir o que pode ser aproveitado e aplicado para o melhoramento ético da sociedade contemporânea. Em questões de metodologia este artigo adota a pesquisa bibliográfica e o método comparativo que faz parte do arcabouço teórico das Ciências da Religião.  

Palavras chaves: Ética; Estudo comparado das religiões; Confucionismo; Calvinismo.


ABSTRACT: This article aims to make a comparative study between Confucian and Calvinist ethics regarding education, family and the concept of human nature. And to find points of convergence and divergence between them, and to discover what can be used and applied for the ethical improvement of contemporary society. In questions of methodology, this article adopts the bibliographic research and the comparative method that is part of the theoretical framework of the Sciences of Religion.  

Keywords: Ethics; Comparative study of religions; Confucianism; Calvinism.


1. INTRODUÇÃO

Estudar e comparar as religiões é uma atividade intelectual enriquecedora para qualquer cientista da religião. É através do estudo comparado que descobrimos os pontos de convergência e divergência entre religiões diferentes. Ou seja, é possível conhecer o que une e o que separa uma religião de outra. E este é o principal objetivo do presente artigo: fazer uma comparação entre os princípios éticos do confucionismo com os do calvinismo, no que concerne à educação, família e natureza humana.

Greschat (2005, p. 126), diz que “comparações aprofundam nosso conhecimento, levam a novos insights”. Certamente o estudo comparado das religiões pode proporcionar um conhecimento mais amplo e sofisticado sobre o fenômeno religioso. Descobrir o que pode unir ou separar duas ou mais tradições religiosas é a tarefa do cientista da religião. 

Também Greschat (2005) fala que existem vários tipos de comparação, e é nesse aspecto que se deve ter cuidado. Há comparações que podem ser usadas apenas para denegrir a religião do outro; outras pode relativizar ou fortalecer a crença religiosa do próprio pesquisador, e outras buscam apenas encontrar os pontos comuns universais entre as religiões. 

E é neste último aspecto que este artigo vai se fundamentar, ou seja, fazer uma comparação entre a ética confucionista e a ética calvinista, no que concerne à educação, família e natureza humana. E também descobrir, nestas perspectivas, o que pode ser aproveitado para o melhoramento ético da sociedade atual.

O confucionismo é uma das tradições filosóficas da China e o seu principal representante é o filósofo chinês Confúcio (551-479 a.C). O calvinismo é uma subdivisão da Reforma Protestante que surgiu na Europa do século XVI, mais especificamente na cidade de Genebra na Suíça, e tem o teólogo João Calvino (1509-1564) como seu principal fundador. 

Confúcio e Calvino viveram em contextos culturais bastante diferentes. Confúcio foi um homem do oriente e Calvino do ocidente. No entanto, o que há de comum entre esses dois personagens é que eles contribuíram, cada um ao seu modo, para que acontecessem mudanças sociais nas regiões em que eles viveram. Para se compreender um pouco a China é fundamental conhecer o pensamento de Confúcio, e de modo semelhante, quando se fala em Reforma Protestante é impossível não falar de Calvino. 

Metodologicamente este artigo faz uso da pesquisa qualitativa bibliográfica em que foram consultadas obras de autores que já fizeram pesquisas específicas sobre o confucionismo e o calvinismo. E também o método comparativo que faz parte do arcabouço teórico das Ciências da Religião.


2. A ÉTICA DE CONFÚCIO

2.1. Um breve perfil de Confúcio

Escrever uma biografia completa sobre Confúcio é algo praticamente impossível, isso porque não existem fontes históricas que narrem de forma confiável a vida do sábio chinês, e o pouco que se sabe sobre ele está mais para lendas que fatos históricos reais. Nas palavras de Poceski:

Não temos muito conhecimento sobre a vida de Confúcio, e as informações que existem vêm de fontes relativamente tardias. Ele nasceu em uma respeitável família de classe alta, que havia decaído devido a tempos difíceis. Seu pai morreu quando ele tinha apenas três anos de idade e ele foi criado em circunstâncias modestas, por sua mãe solteira. [...]. Confúcio casou-se com dezenove anos e teve seu primeiro filho um ano depois. Ele teve alguns empregos, incluindo um serviço de burocrata no governo de seu estado natal. Ele era membro da classe de funcionários-eruditos (shi), que ocupavam posições de baixo e médio nível no governo. (POCESKI, 2013, p. 50)

Por isso qualquer cientista da religião que tenha o interesse de pesquisar e analisar alguma das tradições da China, neste caso o confucionismo, deve começar não pela vida de Confúcio, mas pelos seus ensinamentos. Durante muitos séculos os ensinos confucionistas contribuíram com a formação cultural da China, e eles ainda continuam fazendo parte da vida de chineses e asiáticos. 

De acordo com Poceski a principal fonte escrita e mais confiável é os Analectos, entretanto, deve-se ter consciência que essa obra não foi escrita diretamente por ele, foi um empreendimento feito posteriormente por seus seguidores.

É provável que Confúcio nunca tenha escrito nenhum texto, assim como Buda e Cristo. A principal fonte de seus ensinamentos são os Analectos de Confúcio (Lunyu), uma coleção de diversos aforismos e conversas entre Confúcio e seus seguidores, que não tem uma clara estrutura de organização. Diz a lenda que o texto é um relato integral das frases e debates de Confúcio compilados logo após sua morte pelos discípulos remanescentes (POCESKI, 2013, p. 54).

Confúcio nasceu no pequeno estado de Lu, que se localizava no nordeste da China. Naquele tempo, a população estava vivenciando um período de instabilidade política e crise moral. Confúcio surgiu como uma espécie de restaurador da ordem pública. Infelizmente há pouco conhecimento sobre a China da época de Confúcio, no máximo sabe-se que existiu muita corrupção e desumanidade por parte dos governantes. Lai (2009, p. 35) acrescenta que:

Perturbado pela inquietação do período da Primavera e do Outono, Confúcio (Kongzi) (551-479 a.C.) propôs a reforma ética da sociedade. Sua proposta envolvia a eliminação dos comportamentos exploradores e dos corruptos que estavam no poder. O processo haveria de ser iniciado e conduzido por líderes da sociedade que fossem homens pragmáticos, de educação ampla e percepção ética.

Para alcançar o seu objetivo de transformar a China em um país ético, Confúcio passou boa parte de sua vida tentando conseguir um cargo público na corte de algum dos governantes da China. Muito provavelmente isso era uma questão de estratégia. Como funcionário da corte política, Confúcio teria a oportunidade de ensinar sua filosofia, fazer discípulos e influenciar as decisões do governo. 

Mas infelizmente Confúcio não teve sucesso em seu objetivo. Em uma época turbulenta ouvir um filósofo falando sobre ética e bons costumes não era algo atrativo para nenhum governante chinês. E, embora ele tenha fracassado em seu intento:

[...] ele teve sucesso como educador, tendo atraído um grupo considerável de discípulos dedicados, que transmitiram os seus ensinamentos após a sua morte. Confúcio foi um inovador na área da pedagogia e foi o primeiro indivíduo conhecido a fazer do ensino a sua vocação básica. (POCESKI, 2013, p. 52). 

Diante do exposto, se não tivesse sido o esforço dos discípulos de Confúcio em preservar os seus ensinos, e espalhá-los por diversos lugares da China, ele não teria obtido a fama e o reconhecimento que tem hoje. Educar homens e mulheres para serem cidadãos benevolentes e éticos foi um dos objetivos da vida de Confúcio.

2.2. Ética em Confúcio

Todos os povos e grupos sociais possuem algum código de ética, isto é, uma norma que diz o que é certo ou errado. No transcurso da história humana vários filósofos, pensadores e líderes religiosos discutiram e escreveram sobre a importância da ética na sociedade. Mas o que é ética? Valls (2016, p. 7) diz que “ tradicionalmente ela é entendida como o estudo ou uma reflexão, cientifica ou filosófica, e eventualmente teológica, sobre os costumes ou sobre as ações humanas. ” 

Tomando isso como base, entendemos que as tradições filosóficas e religiosas são fontes de ensinamentos éticos. Os ensinos éticos do confucionismo moldaram a cosmovisão do povo chinês por muitos séculos. Mas antes de falar sobre alguns aspectos da ética de Confúcio é oportuno neste momento tentar responder uma pergunta: o confucionismo pode ser considerado como uma religião? 

Para alguns autores como Mario Poceski, em sua obra Introdução às religiões chinesas, o confucionismo possui expressões que podem ser consideradas como religiosas.

Ao longo da história do confucionismo, existem expressões recorrentes da crença no Céu, muitas vezes acompanhadas do esforço de adivinhar sua vontade divina e agir em conformidade com ela. Há também um reconhecimento tácito de um reino sobrenatural, habitado por diversos deuses e espíritos, juntamente com uma ênfase generalizada no ritual (POCESKI, 2013, p. 46).

Mas quando se analisa o confucionismo, em seus primórdios, não é possível ver nele elementos que são característicos de um sistema religioso. E também não é muito seguro afirmar que Confúcio tivesse o interesse de ser o fundador de uma nova religião. O confucionismo é visto mais como um sistema filosófico ético do que uma religião, talvez o autor citado esteja se referindo não ao confucionismo clássico, mas alguma mudança de paradigma que o confucionismo sofreu no decorrer dos séculos. 

No entanto, isso não significa que Confúcio fosse avesso a religiosidade de sua época. Há uma pequena passagem nos Analectos na qual ele diz que com o passar dos anos conseguiu compreender os decretos do céu.

O Mestre disse: Aos quinze anos, dediquei-me de coração a aprender; aos trinta, tomei uma posição; aos quarenta, livrei-me das dúvidas; aos cinquenta, entendi o Decreto do Céu; aos sessenta meus ouvidos foram sintonizados; aos setenta, segui o meu coração, sem passar dos limites. (CONFÚCIO, 2017, p. 67)

A ética de Confúcio era caracteristicamente humanística, e tinha como fundamento básico a pratica da benevolência, ou seja, para que exista harmonia na sociedade é necessário que todos aprendam a praticar o bem aos outros. Para Confúcio essa era uma das principais virtudes. Ele observou que a China de sua época estava em declínio político e moral porque faltava a virtude da benevolência entre os indivíduos. “O mestre disse: aplico meu coração no caminho, baseio-me na virtude, confio na benevolência para apoio e encontro entretenimento nas artes” (CONFÚCIO, 2017, p. 89).

Poceski explica qual é a essência da benevolência no pensamento confucionista ao dizer que: 

A benevolência envolve um afastamento dos desejos egoístas e obsessões egocêntricas, que são substituídas pela preocupação altruísta relativa ao bem-estar e à felicidade dos outros, juntamente com uma aceitação plácida da boa ou má sorte. Seu âmbito primário e árduo de aplicação é a família, onde primeiro experimentamos ou aprendemos sobre o amor e o cuidado, mas também se estende para fora, para abranger outras pessoas. (POCESKI, 2013, p. 56-57).

O primeiro lugar em que se deve aprender a prática da benevolência é no âmbito familiar. É convivendo com pai, mãe e irmãos que o indivíduo deve ser preparado para saber viver em sociedade. No pensamento de Confúcio a família é muito valorizada, isso porque na cultura chinesa existe a ideia de ancestralidade, isto é, os vivos mantêm o vínculo de ligação com os seus ancestrais.

Pode-se dizer que na ética de Confúcio o bem ao próximo deve ser praticado em primeiro lugar com os familiares sejam eles vivos ou mortos. Küng (2004, p. 117) afirma isso ao dizer que, “para Confúcio, o próximo é em primeiro lugar o membro da família”. Quando as famílias são bem estruturadas isso afeta diretamente a sociedade. Em outras palavras, uma sociedade benevolente é formada por famílias benevolentes, e esse é um dos resultados práticos da ética confucionista. 

Também existe no confucionismo uma ideia conhecida como “devoção filial” que é a reverência que os filhos são obrigados a prestar aos seus pais por toda sua vida. No entanto, isso não foi algo novo criado por Confúcio, muito antes dele, já existia na China a ideia de que os filhos tinham o dever de respeitar os seus pais, e se possível se sacrificar por eles. O que Confúcio fez foi fortalecer essa ideia. 

A família confuciana bem regulada se apoia no conceito de devoção filial (xiao). É razoável afirmar que a devoção filial se encontra no cerne da filosofia inteira de Confúcio. Na boa família confuciana os filhos sempre devem ser deferentes para com seus pais e colocar os interesses e as necessidades deles acima dos seus. A devoção filial se tornou o parâmetro primordial pelo qual os confucianos julgavam as qualidades morais das pessoas. De fato, os confucianos passaram a crer que a devoção filial fosse o fundamento de todas as outras virtudes e da conduta social adequada em todos os aspectos da vida (SCHUMAN, 2016, p. 158).

A família possui um lugar muito importante na filosofia de Confúcio, entretanto esse assunto será tratado com melhores detalhes mais adiante. Mas de tudo o que foi dito até este momento pode-se constatar que Confúcio tinha o desejo de promover o melhoramento moral das pessoas e com isso capacitá-las a conviverem de forma civilizada e benevolente com os outros, principalmente com os seus familiares. 

Mas existe algo bem maior por trás dessa preocupação de Confúcio em querer fazer da China de sua época um lugar ético e harmonioso. Tanto Confúcio como os antigos sábios chineses acreditavam que existia (e existe) no mundo um tipo de energia que é responsável pelo equilíbrio do cosmos, essa energia é conhecida como Tao. Infelizmente não existe uma definição do que seja o Tao, no mínimo sabe-se que quando a sociedade se encontra em desajustes sociais e morais é porque o Tao está em desequilíbrio. 

Se o Tao está em equilíbrio a sociedade estará em equilíbrio, mas se a sociedade passa por momentos de crise, então é o momento no qual as pessoas precisam rever suas vidas e voltarem a andar segundo a Caminho eterno, o Tao. Eis o principal objetivo da filosofia ética confucionista. 


3. A ÉTICA DE CALVINO

3.1. Um breve perfil de Calvino

Torna-se mais fácil escrever sobre João Calvino do que sobre Confúcio, em virtude do significativo número de obras biográficas escritas sobre ele no decorrer dos anos. Ao escrever sobre a vida de Calvino, Berthoud diz que:

João Calvino nasceu na cidade de Noyon, na Picardia, no nordeste de Paris, em julho de 1509. Ele morreu em Genebra em 27 de maio de 1564 aos 55 anos. No começo da década de 1520, João Calvino foi enviado por seu pai a Paris para seguir os estudos que o levariam ao sacerdócio e que favoreceriam, assim, a ascensão social da família. Depois de ter passado por diversos colégios parisienses, ele obteve a graduação, depois o mestrado, na Faculdade de Artes (hoje faculdade de Letras). Em 1526 por decisão paterna, os estudos de Calvino foram reordenados em uma direção completamente nova. Seu pai decidiu, por razões práticas, que seu filho se tornaria advogado, e assim ele passou a estudar Direito, principalmente em Orléans, depois em Bourges. [...]. No início da década de 1530, Calvino passou pela experiência de conversão decisiva sob a influência de Colmar e por meio da descoberta dos escritos de Martinho Lutero (1843-1546) (BERTHOUD, 2017, p. 20).

Calvino foi um renomado teólogo sistemático, advogado e um assíduo estudioso das Sagradas Escrituras. Escreveu várias cartas, comentários de quase todos os livros da Bíblia além de inúmeros sermões. Mas de toda sua obra literária a principal delas foi a Instituição da Religião Cristã, famosamente conhecida como as Institutas

Historicamente a cidade de Genebra foi o berço do calvinismo. Mas como era a situação ética de Genebra na época de Calvino? Infelizmente as informações são muito escassas, existem apenas pequenos fragmentos.

Compreende-se que, segundo os padrões estabelecidos por Calvino e seus companheiros de ministério, havia em Genebra, como herança de tempos passados, costumes inconvenientes e práticas detestáveis, incompatíveis com a ética cristã. Havia bebedeiras, discussões, adultérios, etc... A prostituição era oficializada, sancionada pelas autoridades. Os prostíbulos eram supervisionados por uma mulher eleita pelo concílio, que recebeu do povo o nome de “rainha do bordel”. Além das bebedeiras e dissoluções, jogos, a quebra do domingo, os casamentos e outras festividades celebradas com pouca discrição e muita pompa, fugiam ao recato e modéstia que os reformadores, segundo o seu entender, julgaram necessário estabelecer numa sociedade verdadeiramente evangélica (FERREIRA, 1990, p.78-79).

Segundo essa citação, o comportamento moral dos habitantes de Genebra era dissoluto. Por isso que o principal objetivo de Calvino foi tentar implantar na cidade de Genebra uma ética pautada nos princípios evangélicos. Neste aspecto é possível ver que existe certa semelhança entre Calvino e Confúcio. Ambos entendiam que quando uma população despreza os princípios éticos e morais, essa população passará por momentos de caos e desordem pública. 

Mas fazer com que os moradores de Genebra seguissem à risca os princípios éticos cristãos, segundo o pensamento de Calvino, não foi algo fácil. Houve muita resistência, principalmente de grupos nativos que não aceitavam que um estrangeiro francês, viesse colocar normas e regras sobre a vida privada da população.  Nos anos em que Calvino viveu em Genebra, mais especificamente de 1541 até 1555, ele sofreu muita oposição de um grupo de nativos que ficou conhecido como ‘libertinos”. 

Eles chamavam os adversários de “partido dos libertinos”, como consequência da reivindicação da liberdade oposta às regras da igreja e pela recusa obstinada de se dobrar diante de certos aspectos da disciplina exercida pelo Consistório. Este partido, “patriota” ou “libertino”, de acordo com o ponto de vista, era muito influente no plano social e, até a derrota definitiva em 1555, constituiu o elemento dominante da vida política genebrina (BERTHOUD, 2017, p. 64).

Transformar Genebra em um modelo de cidade cristã foi o maior objetivo de Calvino. Ele desejava que ela tivesse como padrão de conduta ética os preceitos das Escrituras Sagradas. Então, resumidamente podemos dizer que a Reforma Protestante que aconteceu em Genebra foi uma reforma do comportamento. Em outras palavras, a implantação de uma “nova cultura” segundo o pensamento calvinista.   

3.2. Ética em Calvino

A ética de Calvino tem como fundamento a teologia. Ela parte do princípio da revelação especial de Deus que está registrada na Bíblia Sagrada. Uma ideia dominante na teologia calvinista é que tudo o que o homem fizer em sua vida deve ser feito para “a glória de Deus”. Segundo a Escritura Sagrada, o homem foi criado como a “imagem” e “semelhança” de Deus, e por isso, tudo o que ele realizar na terra tem objetivo de glorificar o seu Criador. “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (BÍBLIA, 1999, Gênesis, 1.24, p.3). Sobre a ética calvinista Gomes diz que:

A ética calvinista postula que Deus é soberano sobre todo o universo e toda a criação e que o homem foi criado à sua imagem e semelhança. Imagem e semelhança entendida aqui em sentido ético e moral. O homem reflete em sua natureza, embora decaída, aqueles atributos de Deus ligados à ética e à moralidade, como o amor, a justiça, a santidade e a autodeterminação. O homem é livre para fazer a vontade de Deus, dentro dos limites impostos por sua natureza (GOMES, 2002).  

Pode-se a partir disso entender que, segundo o pensamento calvinista, a ética e a moral tem uma origem sagrada. O homem por ser uma criação do Deus judaico-cristão foi dotado com a capacidade de discernir o certo e o errado. E isso, de certa forma, explica porque ele é inclinado a amar os seus semelhantes, fica indignado com as injustiças da vida e tenta viver de maneira honesta e ordeira. 

A ética fundamentada em princípios bíblicos, foi o meio que Calvino usou para mudar o comportamento promiscuo dos moradores da cidade de Genebra. Se ele teve êxito nesse empreendimento não é possível saber, pois as informações que se tem sobre aquele contexto são muito escassas. 



4. CONFÚCIO E CALVINO: COMPARAÇÕES 

4.1. Educação  

Um ponto comum entre Confúcio e Calvino é a contribuição que a educação pode proporcionar ao melhoramento ético da sociedade. Como foi dito anteriormente, tanto Confúcio como Calvino viveram em épocas distintas, mas que semelhantemente estavam mergulhadas em crises. Por isso usar a educação como um instrumento de restauração da ordem social foi a principal estratégia que esses dois personagens adotaram para alcançar os seus respectivos objetivos.

No entanto, as concepções de educação de Confúcio e Calvino eram distintas. Confúcio acreditava que o homem era capaz de se educar e mediante seu próprio esforço ser uma pessoa melhor. Calvino segue pelo caminho oposto. Para ele o homem é incapaz, por suas próprias forças, de alcançar algum tipo de melhoramento ético. Sem o auxílio de Deus ele não terá êxito em nada. 

Nas Institutas Calvino diz que:

[...] o homem só achará em si infelicidade, fraqueza, perversidade, morte, em suma, o próprio inferno. Para guardar os homens de serem ignorantes a respeito dessas coisas, o Senhor gravou e, por assim dizer, estampou a lei no coração de todos (Romanos 2.1-16). Mas isso nada é senão a consciência, a qual nos testifica interiormente aquelas coisas que devemos a Deus; ela põe diante de nós o bem e o mal, e assim nos acusa e nos condena, concisos como somos, em nosso íntimo, de que não temos cumprido com nosso dever, como nos convém. Todavia, o homem se encontra inchado pela ignorância e a ambição, e cego de egoísmo. Por conseguinte, é incapaz de ver a si mesmo e, por assim dizer, descer em seu interior e confessar sua miséria (CALVINO, 2018, p. 56). 

Mas apesar dessa divergência, Confúcio e Calvino concordariam que a aquisição do conhecimento é fundamental para que exista uma boa educação. “O mestre disse: Silenciosamente depositar conhecimento na minha mente, aprender sem perder a curiosidade, ensinar sem cansar: isso não me apresenta dificuldade alguma” (CONFÚCIO, 2017, p. 89).

Para Calvino é importante que o homem tenha o conhecimento de Deus e de si mesmo. 

A fim de chegarmos a um sólido conhecimento de nós mesmos, em primeiro lugar temos de lançar mão do fato de que Adão, o pai de todos nós foi criado “à imagem e à semelhança de Deus” (Gênesis 1.26,27). Equivale dizer que ele foi adornado com sabedoria, justiça e santidade, e foi de tal modo unido a Deus por esses dons da graça de Deus que poderia ter vivido eternamente nele, se houvesse permanecido inabalável na integridade que Deus lhe outorgara (CALVINO, 2018, p. 54).

A partir dessas palavras, Calvino mostra que o verdadeiro conhecimento só pode ser obtido quando se conhece a Deus. Ou seja, conhecer a Deus e si mesmo foi o principal objetivo da educação no pensamento calvinista.   

No caso de Confúcio concernente à educação, ele foi um professor por excelência. Como não teve sucesso em conseguir um cargo público na corte de algum governante chinês, dedicou o resto de sua vida em educar e formar um grupo de discípulos que fossem cultos e éticos. Sem dúvida foi na área da educação que Confúcio deixou o seu legado para as futuras gerações. 

Não há evidencias de que Confúcio tenha fundado uma escola conforme os padrões institucionais contemporâneos que conhecemos. O pouco que se sabe é que ele dava aulas particulares em sua residência a todos os que tivessem interesse em aprender. “A primeira escola particular foi fundada por Confúcio, cujos discípulos moravam em sua casa, recebendo instrução e formação sistemática para exercer cargos públicos e prestar serviços à sociedade” (WILHELM, 2012, p. 18). 

Harmonia e benevolência são as palavras chaves para se compreender o pensamento ético e educacional confucionista. Confúcio tinha o desejo de restaurar a ordem e a harmonia que tinham sido perdidas na sociedade chinesa de seu tempo. Neste ponto ele pode ser visto como um tipo de “reformador” semelhante a Calvino, a diferença é que Calvino foi um reformador religioso. De acordo com Poceski:  

As principais preocupações de Confúcio e os princípios centrais de seu pensamento convergiam para a perfeição da conduta humana nesta vida, que devia ser cultivada dentro de um contexto comunitário, envolvendo a interação apropriada com as outras pessoas e o domínio dos meandros da complexa teia das relações sociais. As duas principais virtudes e conceitos fundamentais dos ensinamentos morais de Confúcio são o ritual (li), entendido no sentido de decoro ritual, e a benevolência (ren). Para ele, essas duas virtudes serviam como bases indispensáveis para a conduta humana adequada. Quando aperfeiçoadas e representadas na arena pública com genuína sinceridade, elas naturalmente provocam uma transformação social positiva (POCESKI, 2013, p.55). 

Em suma, para Confúcio o aperfeiçoamento ético e moral depende do esforço pessoal de cada indivíduo, se cada um fizer a sua parte observando os ritos (que podem ser entendidos como etiqueta) e sendo benevolente com todos, a ordem e a harmonia na sociedade seriam restauradas. Talvez Calvino concordasse com Confúcio sobre a relevância de ensinar valores éticos e morais para que exista civilidade e harmonia na sociedade, mas provavelmente discordaria se isso dependesse apenas do esforço humano. 

João Calvino parte da crença de que tudo o que existe no mundo está sob o controle de Deus, ou seja, Deus é soberano sobre tudo e todos. Qualquer atividade que o homem realize na sociedade que não esteja em “harmonia” com os desígnios de Deus estará fadada ao fracasso. A educação segundo o modelo calvinista tem o principal objetivo de conduzir as pessoas, jovens e adultos, ao conhecimento de Deus e do evangelho. Em outras palavras, a educação calvinista tem um caráter cristão confessional. Segundo Vieira:

[...] Calvino também acreditava na restauração da condição divina do ser humano, perdida com a queda de Adão, não diretamente pelo seu próprio esforço, mas pela graça de Deus. A educação, na perspectiva calvinista, é um instrumento auxiliador para sua iluminação. As Escrituras revelam aquilo que é necessário ao ser humano conhecer sobre o Criador e a natureza (VIEIRA, 2008, p. 143).

A educação foi apenas um instrumento usado por Calvino na tentativa de restaurar uma cidade (neste caso Genebra) que estava vivendo em caos social e ético. Essa situação era resultado da falta do conhecimento de Deus e dos princípios morais que estão contidos nos textos dos evangelhos. Calvino tinha o sonho de criar uma cidade fundamentada nos preceitos éticos evangélicos. Ou seja, o objetivo era transformar os nativos de Genebra em cristãos, e não em “calvinistas”. 

Viera (2008, p.147) diz que “o domínio dos textos sagrados era o conhecimento indiscutivelmente mais apreciado por Calvino, pois neles é que Deus se revela de modo especial”. Na teologia cristã existem dois tipos de revelação: a geral e a especial. A primeira é a revelação de Deus por meio do universo e da natureza, este tipo de revelação é acessível a todos os homens. 

Mas a segunda é restrita somente aquelas pessoas que são capazes de ler e compreender as Sagradas Escrituras. Pois é nas Escrituras que está contida a revela especial de Deus, que para os cristãos é Jesus Cristo. Ou seja, uma pessoa só poderá ter acesso a essa revelação especial se antes tiver passado por um processo de alfabetização. Esse foi um dos motivos que motivou Calvino a usar a educação como um instrumento para implantar o seu projeto religioso-reformador na cidade de Genebra. 

Calvino acreditava que a pregação feita por pessoas capacitadas para tal, bem como a população esclarecida pelo treinamento escolar em línguas e humanidade, constituía a conjunção perfeita, que despertaria a consciência humana e transformaria a sociedade (VIERIA, 2008, p. 151).

Vieira também diz que a maior contribuição e legado de Calvino para o progresso da educação foi a fundação da Academia de Genebra em 1559:

Entre as medidas tomadas por Calvino referentes a educação, a fundação da Academia de Genebra em 1559 foi, sem dúvida nenhuma, a mais importante. Dessa instituição, saíram os pastores e os defensores que levaram os fundamentos da fé protestante nos moldes calvinistas por diversos países da Europa. De Genebra, a teologia de Calvino chegou até a França, Inglaterra, Holanda, Alemanha e Suíça (VIEIRA, 2008, p. 160).

Aqui existe um ponto em comum. O calvinismo e o confucionismo, com o passar do tempo, se transformaram em movimentos expansionistas, isto é, eles não ficaram restritos somente em seus locais de origem, eles se espalharam e foram implantados em outros lugares do mundo. Lugares longínquos que nem Calvino e Confúcio colocaram os pés. Entretanto, essa expansão só aconteceu graças ao esforço e comprometimento de calvinistas e confucionistas posteriores. 

Então é possível afirmar que para Confúcio e Calvino a ética e a educação andam juntas. A diferença é que dependendo da época e do contexto elas seguirão por caminhos diferentes. Na próxima seção vamos saber o que Confúcio e Calvino entendiam sobre ética no âmbito familiar. 

4.2. Família

Como foi dito anteriormente, no pensamento de Confúcio à família tem um lugar importantíssimo, na verdade tudo começa a partir dela. Küng diz que:

A preocupação primária do confucionismo é com o lado exterior da vida chinesa, com a organização da vida familiar e política. Ele considera toda a sociedade humana como um sistema de relações pessoais, que precisam ser harmonicamente organizadas a partir da família (KÜNG, 2004, p. 118).

É no convívio familiar que a ética e os bons costumes devem ser ensinados e vivenciados. No confucionismo existem cinco relacionamentos que são básicos para que uma família chinesa possa viver harmonicamente. O relacionamento entre superiores e inferiores, entre pai e filho, entre marido e mulher, entre irmãos e entre amigos. E o que faz com que esses relacionamentos sejam sólidos é a virtude da benevolência entre as pessoas. 

Por exemplo, quando um marido trata sua esposa com benevolência haverá reciprocidade da parte dela para com ele. De modo semelhante entre um patrão e os empregados, entre pai e filho, entre irmãos e entre amigos. Ou seja, como a sociedade é constituída geralmente por famílias é necessário que exista um ambiente de harmonia e respeito, mas quando isso não existe ou é destruído a sociedade passa por momentos de caos e desordem.

Outro aspecto interessante do pensamento de Confúcio sobre as relações familiares é que elas devem ser refletidas no governo. Muito provavelmente a ideia moderna de democracia foi algo desconhecido na época de Confúcio. Naquele contexto o regime de governo era o monárquico no qual o imperador era o chefe supremo da nação. Schuman (2016, p. 171) diz que “na concepção confuciana, portanto, o Estado se tornava uma fotocópia ampliada da família. Se o Estado operasse do mesmo modo que a família operava, lograr-se-ia o bom governo e a sociedade se manteria em ordem”.  

Para Confúcio era extremamente necessário que o líder político do país fosse exemplo de vida ética para a população. “O mestre disse: Se um homem é correto, então haverá obediência sem que ordens sejam dadas; mas se ele não é correto, não haverá obediência, mesmo que ordens sejam dadas” (CONFÚCIO, 2017, p. 122). Em um outro fragmento dos Analectos, lemos: 

O duque Ai perguntou: O que devo fazer para que o povo me admire? Confúcio respondeu: Promova os homens corretos e coloque-os acima dos desonestos, e o povo o admirará. Promova os homens desonestos e coloque-os acima dos homens corretos, e o povo não o admirará (CONFÚCIO, 2017, p. 69). 

Também é notório perceber que Confúcio foi um conservador no que tange as tradições e os costumes antigos.  “O mestre disse: não nasci com conhecimento, mas por gostar do que é antigo, apressei-me em buscá-lo” (CONFÚCIO, 2017, p. 92). Na cultura chinesa os ancestrais são muito reverenciados e respeitados, tudo o que eles ensinaram e deixaram como legado para as futuras gerações não deve ser esquecido. 

Aqui existe certo ponto de convergência entre Confúcio e Calvino. De modo semelhante Calvino foi um conservador das tradições cristãs antigas. Principalmente da tradição apostólica. No entanto, certamente, Calvino não concordaria com a pratica do “culto aos ancestrais” que existe na cultura chinesa. 

Mas como foi dito anteriormente existe no confucionismo um conceito que é desconhecido na cultura ocidental que é a devoção filial. “Meng Wu Po perguntou sobre a piedade filial. O mestre disse: Não dê ao seu pai e à sua mãe nenhuma outra causa de preocupação além da doença” (CONFÚCIO, 2017, p. 67). Os filhos desde cedo são ensinados a reverenciar e respeitar os seus pais e fazer de tudo pelo bem-estar deles. E mesmo com a morte dos pais as obrigações dos filhos não cessam. Segundo Schuman:

As obrigações filiais não terminavam nem mesmo com a morte dos pais. Comprovava-se que um filho era verdadeiro devoto caso ele continuasse a cumprir os desígnios de seu pai mesmo depois de sua morte. [...]. O luto pelos pais estava entre os rituais confucianos mais importantes (SCHUMAN, 2016, p. 162).

A família não foi um tema muito explorado por Calvino, no entanto, isso não significa que ela fosse um assunto menos importante para ele. Como foi dito na introdução deste artigo, o calvinismo é uma subdivisão do protestantismo, que por sua vez é uma divisão interna do cristianismo. Ou seja, o que Calvino escreveu sobre a família vem da teologia cristã, como também do Decálogo. 

Para judeus e cristãos os dez mandamentos são uma esplendida fonte de ensinos morais e éticos, eles ensinam objetivamente qual o tipo de comportamento que um indivíduo deve ter diante de Deus e do próximo. Os quatro primeiros mandamentos são direcionados ao temor e veneração ao único Deus, e os outros seis com relação as pessoas. Nas Institutas Calvino faz um breve comentário sobre o quinto mandamento.      

Honra a teu pai e tua mãe (Êxodo 20.12).

Visto que Deus deve ser amado e temido por nós, não devemos negligenciar nossos pais, nem ofendê-los de maneira alguma. Ao contrário, temos de mostrar grande deferência para com eles, reverenciá-los e honrá-los, obedecer a eles sob a vontade do Senhor; e nos empenharmos, e nos obrigarmos, e agradarmos àquele a quem nosso esforço possa tornar-se útil nessas questões (Efésios 6.1-3; Mateus 15.4-6). Adiciona-se uma benção: “para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá”. É como se, com isso, fizesse uma recomendação singular, declarando quão agradável a Deus é a observância desse mandamento e, ao mesmo tempo, despertando-nos da letargia, ao instar os filhos ingratos que porventura tenham negligenciado a reciprocidade e a demonstração de gratidão para com seus pais, no sentido de que podem esperar a mais certa maldição (CALVINO, 2018, p. 75-76).

Deixar de honrar os pais é uma transgressão ao mandamento divino e é isso que Calvino quer dizer. Os filhos que são rebeldes ou negligentes com os cuidados devidos aos seus pais serão alvos da maldição divina. Aqui é possível ver uma diferença de perspectiva entre Confúcio e Calvino. Para o primeiro o cuidado pelos pais não está atrelado a nenhum tipo de mandamento divino. Ele é apenas um comportamento moral que se exige dos filhos chineses desde os seus primeiros anos de vida. Para o segundo o que incentiva um filho a cuidar e obedecer aos seus pais é o temor de Deus, isto é, se honra os pais não pelo que eles são, mas porque é um mandamento divino. 

Segundo as palavras de Calvino os filhos que cumprem o quinto mandamento e são zelosos pelo bem-estar de seus pais serão agraciados com uma vida feliz e longeva. Isso mostra que em algumas situações a religião, através de suas doutrinas e princípios éticos, pode contribuir em muito com a coesão social. 

Por tudo o que já foi exposto pode-se afirmar que entre Confúcio e Calvino a família deve ser valorizada e preservada. Na próxima seção veremos o que há de convergente e divergente entre Calvino e dois discípulos de Confúcio, Mêncio e Xunzi, no que concerne a natureza humana.

4.3. Natureza humana 

A natureza humana é boa ou má? Mêncio defende que ela é boa, mas Xunzi discordaria afirmando que ela é má. Mêncio e Xunzi são os representantes de duas correntes de pensamento antagônicas que existiram dentro do confucionismo clássico. O primeiro tinha uma visão otimista da natureza humana, enquanto o segundo tinha um olhar mais pessimista.  

Mêncio, um dos primeiros discípulos proeminentes da segunda geração de Confúcio, argumentava que a natureza humana é originalmente boa. De acordo com Mêncio, a malevolência se devia aos vários fatores externos que haviam desviado os humanos de suas naturezas originais. [...] Xunzi se opunha dizendo que a natureza humana era moralmente má, para começar, e que necessitava ser corrigida para evitar maior desintegração da condição humana. O debate sobre o estado original da natureza humana a seu cultivo se desenvolveu muito, tanto dentro quanto fora da escola confuciana (LAI, 2009, p. 54).

Não se sabe com certeza o que Confúcio pensava sobre a natureza humana, e muito provavelmente essa obscuridade de seu pensamento foi o que gerou essa polêmica entre os seus discípulos. Confúcio acreditava que os homens deveriam se esforçar para viver de modo ético e benevolente na sociedade, mas se a natureza humana é boa ou má ele não deixou isso muito claro. 

Mêncio vai defender a ideia de que a bondade é algo inato da natureza humana, ou seja, cada pessoa nasce com a capacidade de ser virtuosa e praticar atos de bondade com outras pessoas. Segundo Poceski:

Mêncio propôs uma doutrina sobre a bondade essencial e intrínseca da natureza humana, que está de acordo com o céu. Ele acreditava que todos os homens são basicamente bons, mesmo que muitas vezes se desviem de sua bondade fundamental e ajam de formas prejudiciais (POCESKI, 2013, p. 66). 

Xunzi discorda dessa ideia. Seguindo pelo caminho oposto ele defende que os homens são essencialmente maus e egoístas por natureza, e por isso precisam aprender a viver de maneira justa, correta e benevolente. Caso não sejam educados para esse fim se entregarão a violência e consequentemente a sociedade cairá em caos e desordem. De acordo com Poceski:

A natureza humana é a maldade. [...]. Se as pessoas seguirem sua natureza e se entregarem às suas emoções, a luta e a disputa serão inevitáveis, levando-as a transgredir seus deveres, usurpar o princípio correto, e apelar para a violência. Portanto, somente ao serem transformadas pelos exemplos de professores e as formas de ritual e justiça, elas poderão adquirir cortesia e civilidade, para que possam desenvolver o refinamento cultural e o ritual, e retornar à boa ordem. Ao olhar para isso dessa forma, fica claro que a natureza humana é má, e que a bondade é um produto de esforço consciente (POCESKI, 2013, p. 68).

Entre esses dois pensadores confucionistas qual deles João Calvino teria mais afinidade? Para que se possa chegar a uma conclusão, primeiramente é fundamental entender o que Calvino pensava sobre a natureza humana. Sabe-se que tudo o que Calvino crê, entende e escreveu sobre a natureza humana está fundamentado na Bíblia Sagrada, mais especificamente no livro do Gênesis que contém a narrativa do primeiro casal humano criado por Deus, Adão e Eva, e no Novo testamento, mais especificamente nos evangelhos e nas cartas do apóstolo Paulo.

Calvino parte do pressuposto de que todos os homens são descendentes diretos do primeiro casal criado por Deus. E por terem desobedecido às ordens de Deus, esse casal junto com a sua prole tornaram-se maus e corruptos. Ou seja, antes da queda a humanidade tinha uma natureza boa, mas após a queda essa natureza sofreu uma drástica mudança tornando-se má. 

Mas, quando Adão deslizou para o pecado, essa imagem e essa semelhança de Deus foram canceladas e obliteradas, ou seja, ele perdeu todos os benefícios da graça divina, pelos quais teria sido possível retomar o caminho da vida (Gênesis 3). [...]. Essa calamidade recaiu não só sobre o próprio Adão, mas também vicejou em nós, que somos sua semente e progênie. Consequentemente, todos nós que nascemos de Adão somos ignorantes e destituídos de Deus, perversos, corruptos e carentes de todo o bem (CALVINO, 2018, p. 54). 

É notório perceber que a partir dessas palavras Calvino se aproxima mais de Xunzi do que de Mêncio. Calvino possui uma visão pessimista da natureza humana, para ele os homens são essencialmente maus e perversos por causa dos erros de Adão. Entretanto existem algumas diferenças entre Calvino e Xunzi sobre esse assunto que pontuaremos. 

Em primeiro lugar, provavelmente Xunzi não aceitaria que a maldade que existe na natureza humana seja consequência dos erros feitos por algum antepassado, a ideia do “pecado herdado” não faz parte do pensamento confucionista.

Em segundo lugar, Xunzi acreditava que a educação era o meio mais eficaz para transformar a natureza humana, e isso aconteceria através do bom exemplo dos professores. Provavelmente Calvino concordaria, em parte, com essa ideia de Xunzi. No entanto, além do bom exemplo ético dos professores existe algo mais: a graça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo. Isso quer dizer que os homens, segundo o pensamento calvinista, são incapazes por seus próprios méritos alcançar algum tipo de melhoramento ético, é necessário que aconteça algum tipo de ação divina em suas vidas. Neste aspecto existe uma divergência entre Calvino e Xunzi. 


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do presente artigo possibilitou uma análise sobre algumas das convergências e divergências entre a ética confucionista e a calvinista. Satisfatoriamente foi possível descobrir que existem mais convergências do que divergências entre o confucionismo e o calvinismo no que concerne a aplicação dos princípios éticos, principalmente na educação e na família. Certamente os legados éticos de Confúcio e Calvino ainda são relevantes para a sociedade contemporânea. 

O estudo comparado das religiões pode aprofundar o nosso conhecimento e consequentemente ampliar o nosso olhar sobre o fenômeno religioso. Mas é necessário ter consciência de que: toda comparação tem limites. É saudável comparar para descobrir pontos de convergência e com isso criar pontes de aproximação entre tradições religiosas diferentes. Entretanto, seria muito antiético usar o método comparativo com o objetivo de denegrir a religião do outro. 

Este artigo, como qualquer outro, tem suas limitações. Existem informações sobre o calvinismo e mais especificamente sobre o confucionismo que poderiam ter sido mais exploradas e analisadas. 


6. REFERÊNCIAS

BERTHOUD, Jean-Marc. Calvino, Genebra e propagação da reforma na França do século XVI. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.

BÍBLIA. A.T. Gênesis. In: Bíblia Sagrada. Traduzida em português por João Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999, p.3

CALVINO, João. Institutas da religião cristã. São José dos Campos, SP: Fiel, 2018.

CONFÚCIO. Os analectos. Porto Alegre: L&PM, 2017. 

FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas: Luz para o caminho, 1990. 

GOMES, Antônio Máspoli de Araújo. O pensamento de João Calvino e a Ética Protestante de Max Weber, Aproximações e Contrastes. Fides Reformata 7/2, 2002. 

GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é Ciência da Religião? São Paulo: Paulinas, 2005. 

LAI, Karen L. Introdução à filosofia chinesa: confucionismo, moismo, daoismo e legalismo. São Paulo: Madras, 2009.

KÜNG, Hans. Religiões do mundo: em busca de pontos comuns. São Paulo: Verus, 2004.

POCESKI, Mario. Introdução às religiões chinesas. São Paulo: Unesp, 2013.

SCHUMAN, Michael. Confúcio e o mundo que ele criou: a história e o legado do filósofo que mais influenciou a China e o leste asiático. São Paulo: Três estrelas, 2016.

VALLS. Álvaro L.M. O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 2016.

VIERIA, Paulo Henrique. Calvino e a educação: a configuração da pedagogia reformada no século XVI. São Paulo: Mackenzie, 2008.

WILHELM, Richard. A importância histórica de Confúcio. In. WILHELM, Richard; QUIAN, Sima; MING, Ku Hung. Introdução a Confúcio. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 18